COLUNA SEGUROS CONTEMPORÂNEOS | A RECUPERAÇÃO JUDICIAL E O CONTRATO DE SEGURO GARANTIA
02/03/2023
Incertezas são elementos que se encontram presentes em todas as escolhas e ações humanas, em todas as esferas da sociedade.
Por ser inafastável, o risco tornou-se um fator a ser minorado e bem enfrentado com o manejo de diversas ferramentas, criadas com o fim de proporcionar maior segurança e previsibilidade frente aos inevitáveis imprevistos e infortúnios porventura encontrados [1].
No universo jurídico, revelam-se, dentre essas ferramentas de controle de incertezas, diversas modalidades de contratos de seguro, os quais estarão submetidos ao regime de recuperação judicial previsto na Lei 11.101/2005, na hipótese de crise da empresa.
Pelo seu escopo próprio, a legislação de insolvência empresarial tem aplicação destinada aos agentes econômicos listados na lei, com a exclusão de outros, que ficam submetidos a regime diverso [2]. É esse o caso das companhias seguradoras, que se submetem à regulação própria, estipulada, especialmente, pela Superintendência de Seguros Privados (Susep), lastreada no Decreto-Lei nº 73/1966, artigos 94 a 107 [3].
Referido regime regulatório tem por objetivo evitar a ocorrência de eventos de insolvência, com potencial impacto sistêmico [4] a todo o mercado securitário, por meio do estabelecimento de regras de caráter prudencial:
“Regulação prudencial diz respeito ao estabelecimento de regras que visem a resguardar a solvência das sociedades e entidades supervisionadas pela Susep (ou seja, sua capacidade financeira para cumprir os compromissos assumidos junto aos segurados e beneficiários) mesmo em face de eventuais acontecimentos desfavoráveis” [5].
Nesse sentido, a intervenção regulatória do Estado no mercado de seguros objetiva dupla proteção, tanto do ponto de vista do segurado, quanto das próprias seguradoras [6].
Assim, na eventual ocorrência de crise de uma seguradora, não se aplica, em um primeiro momento, o regramento disposto na Lei 11.101/2005, mas sim o regime próprio regulatório consubstanciado no regramento estabelecido pelo órgão regulador do mercado, adstrito, essencialmente, aos termos constantes no Decreto-Lei 73/1966 [7].
Em que pese a distinção posta entre a legislação aplicável, é inegável que a submissão de determinado agente econômico ao regime de insolvência empresarial implica em consequências a diversos players econômicos que com ele se relacionem, a exemplo das companhias seguradoras.
São diversas as controvérsias encontradas na interface entre recuperação judicial e seguros, não sendo naturalmente nossa pretensão exaurir o tema posto nesse breve ensaio. Assim, cite-se o caso dos contratos de seguro garantia [8], nos quais a sociedade em regime de recuperação judicial figure como tomadora do contrato [9]. Na referida modalidade de seguros, o tomador (proponente do contrato de seguro) é o devedor da obrigação principal garantida e contrata, junto à seguradora, uma apólice, que garante ao credor (segurado) o fiel cumprimento da obrigação pactuada. Trata-se de importante instrumento contratual de minoração de riscos, muito utilizado em contratos de prestação de serviços e na construção civil.
Por meio desta modalidade de contrato, na hipótese da ocorrência do evento não desejado (sinistro), em que o tomador do seguro não arque com a obrigação garantida (objeto principal do contrato), a seguradora indenizará o segurado (credor) mediante: (1) pagamento em dinheiro dos prejuízos ou (2) a execução da obrigação garantida.
Em vista das disposições do artigo 6º, II [10] e 49, §1º [11], da Lei 11.101/2005, questiona-se: na eventual submissão do tomador do contrato de seguro ao regime de recuperação judicial, a seguradora pode ser acionada, devendo arcar com o pagamento da indenização, relativa à obrigação principal pactuada?
A controvérsia foi objeto de decisão do Superior Tribunal de Justiça, em sede de conflito de competência suscitado entre a justiça trabalhista e a comum (cível), definindo que a natureza da relação existente entre a seguradora e o credor da obrigação principal garantida (exequente) difere substancialmente daquela mantida com os coobrigados em geral, razão pela qual a execução pode seguir contra estes (coobrigados), mas nem sempre contra a seguradora, uma vez que a sua obrigação se origina diretamente do contrato de seguro firmado e não do título da obrigação [12].
Assim, no entendimento do relator do recurso, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a submissão da tomadora de um seguro garantia ao regime de recuperação judicial, além de extinguir a execução contra o devedor principal da obrigação, só implica em obrigação para a seguradora de arcar com o prejuízo naqueles casos em que o fato gerador da obrigação (sinistro) tenha ocorrido em momento anterior ao pedido de recuperação judicial [13]:
“Diante de tais premissas, ou seja, de que o dever de pagar a indenização por parte da seguradora nasce a partir da ocorrência do fato gerador do sinistro e de que a aprovação do plano de recuperação judicial implica a novação da dívida garantida, é possível concluir que: 1) se o fato caracterizador do sinistro não tiver ocorrido até o deferimento do processamento do pedido de recuperação judicial, a novação da dívida garantida impede a execução da apólice, e 2) se o fato caracterizador do sinistro tiver ocorrido antes do deferimento do pedido de recuperação judicial e por qualquer motivo ainda não houver sido realizado o pagamento da indenização, poderá o juízo determinar que a seguradora o faça, sobretudo porque tal determinação: a) não acarreta a diminuição do patrimônio da empresa recuperanda, visto que a incumbência do depósito recairá sobre a companhia seguradora e b) não ofende o princípio da pars conditio creditorum, considerando que a seguradora, ao se sub-rogar nos direitos e privilégios do segurado contra o tomador, terá que habilitar seu crédito na recuperação judicial”.
O julgado proferido consubstancia, em nosso sentir, importante marco para o mercado securitário, atribuindo maior previsibilidade e segurança jurídica a todos os seus participantes.
Os contratos de seguro e a recuperação judicial são, ambos, instrumentos de relevantíssima função social, de forma que a sua harmonização e adequada compreensão tornam-se fundamentais para cumprirem, cada qual, com seus objetivos na seara econômica, como bem concretizado no âmbito do relevante julgado do Superior Tribunal de Justiça.
Publicado por ConJur