COLUNA SEGUROS CONTEMPORÂNEOS | DIREITO DOS SEGUROS: LUZES E SOMBRAS DOS ENUNCIADOS DA IX JORNADA DE DIREITO CIVIL
26/05/2022
Por ocasião da IX Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal (CJF) na última semana em Brasília, foram aprovados dois enunciados que tangenciam o Direito dos Seguros, quais sejam:
1) “Do princípio da boa-fé objetiva, resulta o direito do segurado, ou do beneficiário, de acesso aos relatórios e laudos técnicos produzidos na regulação do sinistro”; e
2) “Diante do princípio da boa-fé objetiva, o regulador do sinistro tem o dever de probidade, imparcialidade e celeridade, o que significa que deve atuar com correção no cumprimento de suas atividades”.
Os respectivos enunciados se unem aos demais aprovados em outras jornadas de Direito Civil, bem como aos enunciados das Jornadas de Direito Administrativo [1] e de Direito Comercial [2] que tratam dos contratos de seguro.
O presente artigo tem como afã tecer algumas reflexões sobre os enunciados recém-aprovados e sobre as Jornadas em si.
Promovidas desde 2002, as Jornadas de Direito Civil têm como objetivo, conforme afirmado pelo Centro de Estudos Judiciários, “reunir magistrados, professores, representantes das diversas carreiras jurídicas e estudiosos do Direito Civil para o debate, em mesa redonda, de temas sugeridos pelo Código Civil de 2002 e aprovar enunciados que representem o pensamento da maioria dos integrantes de cada uma das diversas comissões (Parte Geral, Direito das Obrigações, Direito das Coisas, Direito de Empresa, Responsabilidade Civil e Direito de Família e Sucessões)” [3].
Nas primeiras jornadas, os enunciados eram aprovados constando o nome de seu respectivo proponente, o que acabou por ser abandonado para dar um viés mais institucional e evitar a aprovação ou descarte de proposições em virtude do critério pessoal. Ao longo do tempo, mais precisamente a partir da VI Jornada, ocorrida em 2013, passou-se a publicá-los com a respectiva justificativa, permitindo-se mais amplo controle de sua fundamentação [4]. Tais alterações foram positivas e devem ser constantemente saudadas.
Apesar de alguns enunciados serem inquestionáveis [5], outros nunca chegaram a influenciar a doutrina e a jurisprudência, tendo pouco ou nenhum relevo no cenário nacional [6].
Seja como for, convém recordar que tais enunciados não têm força vinculante e não se constituem como fonte de direito, servindo apenas como balizas iniciais de interpretação. De acordo com o próprio Centro de Estudos Judiciários, “Os enunciados não expressam o entendimento do Conselho da Justiça Federal, que apenas promove o evento, menos ainda do Superior Tribunal de Justiça, mas representam o pensamento médio da maioria das respectivas comissões temáticas” [7].
Tendo em atenção os últimos enunciados aprovados, merece elogios aquele que atesta: “Diante do princípio da boa-fé objetiva, o regulador do sinistro tem o dever de probidade, imparcialidade e celeridade, o que significa que deve atuar com correção no cumprimento de suas atividades”.
Não resta dúvida de que todos esses deveres são inerentes ao mister desenvolvido pelos reguladores de sinistro, sejam eles internos (colaboradores da própria seguradora), sejam eles externos (prestadores de serviço contratados para esse fim) [8]. Como exemplo clássico de atitude em dissonância com a boa-fé objetiva, pode-se citar a vinculação da remuneração do regulador ao índice de pagamento de sinistros pelas seguradoras.
Em síntese essencial, o enunciado em tela consagra o que é de conhecimento dos que atuam no setor segurador. Como o óbvio às vezes também precisa ser dito, a sua aprovação não enseja maiores questionamentos e deve ser aplaudida.
Tal afirmativa não pode ser feita em relação ao outro enunciado aprovado, que, se não aplicado cum grano salis, promete gerar confusão e situações indesejadas. Recorde-se os seus termos: “Do princípio da boa-fé objetiva, resulta o direito do segurado, ou do beneficiário, de acesso aos relatórios e laudos técnicos produzidos na regulação do sinistro”.
Embora o enunciado seja sedutor, a sua aplicação de modo irrestrito não resiste a uma análise apurada. No que se refere aos laudos técnicos, por exemplo, de engenheiros e médicos, a sua correção é cristalina. Por certo, ao menos a versão final desses documentos devem ser partilhados com o segurado pela seguradora. Apenas dessa forma o segurado poderá examinar e se for o caso contrapor com argumentos técnicos as conclusões alcançadas pelos especialistas.
No que tange aos relatórios de regulação em si, de caráter eminentemente jurídico, o terreno fica mais nebuloso. Atualmente, as seguradoras não compartilham tais relatórios, uma vez que não possuem qualquer vinculação legal ou regulatória para tanto, sendo pouco expressivo o número de casos que são judicialmente compelidas a fazê-lo. O posicionamento das seguradoras, inclusive na esteira do que é exigido pela regulação da Superintendência de Seguros Privados (Susep) [9], é sempre repassado ao segurado por meio de uma carta justificada, com os principais argumentos da negativa ou da cobertura (ainda que parcial), o que igualmente permite um pedido de reanálise por parte do segurado/beneficiário ou até mesmo o ingresso de uma demanda judicial.
Seria o princípio da boa-fé objetiva apto a gerar um dever de compartilhamento integral dos relatórios de regulação do sinistro? A resposta certa a essa pergunta, na nossa visão, deve ficar vinculada aos contornos do caso concreto. Por exemplo, em caso de suspeita de fraude de beneficiário que supostamente teria dado fim à vida do segurado. Como a seguradora que atua no ramo vida poderá compartilhar tal informação sem causar danos ao beneficiário e ficar exposta a uma responsabilização nas esferas civil e penal? Certamente as sindicâncias estão fora do espectro desse enunciado, mas as suas conclusões acabam compondo os relatórios de regulação e, de uma maneira ou de outra, acabam por chegar ao conhecimento do segurado.
Ora, o segurador, no ordenamento jurídico brasileiro, não está vinculado a sequer seguir o relatório de regulação de sinistro. Imagine-se, por exemplo, se o regulador externo deixar de considerar uma condição particular devidamente destacada em negrito e que exclua expressamente a cobertura disposta nas condições gerais. Não obstante o relatório, poderá a seguradora optar pela negativa de cobertura, devendo justificar ao segurado/beneficiário a sua conclusão em carta própria, mediante a devida fundamentação. Eventuais condutas inadequadas por parte da seguradora poderão ensejar aumento de litígios, abalo à sua reputação entre os clientes e no próprio mercado, bem como sanções administrativas e judiciais.
É preciso, aqui, separar o joio do trigo. É comum que conste nos relatórios de regulação de sinistro que determinada cláusula contratual retira o direito à cobertura do segurado, mas que o Poder Judiciário brasileiro por vezes afasta a possibilidade de tal negativa. Como obrigar o segurador a compartilhar tal documento feito por seu jurídico interno com o segurado? A boa-fé, de fato, vincularia o segurador a ir tão longe ou a carta justificada pelo segurador já seria suficiente?
Vista a questão sob outro enfoque, caso o segurado contratasse um parecer sobre a legitimidade do seu pleito junto ao segurador e o parecerista entendesse que a ele não assiste razão, estaria o segurado vinculado, com base no princípio da boa-fé objetiva, a compartilhar tal documento com o segurador? A questão, que não é de simples resposta, ganha contornos ainda mais complexos quando se fala dos seguros de grandes riscos, em que o segurado e a seguradora estão em paridade de condições [10] e, portanto, não seria demais imaginar o interesse do segurador em acessar os relatórios produzidos por uma grande construtora de plataformas, por exemplo, a respeito dos danos causados ao equipamento, na ocasião de um sinistro.
Em sede doutrinária, o tema da amplitude da transparência inerente ao segurador é controvertido. Em recente obra, de leitura obrigatória, os professores Bruno Miragem e Luiza Petersen defendem que “os documentos coletados e produzidos na regulação deverão ser considerados comuns às partes”, ressalvando, entretanto, que isso não se aplicará aos “reputados confidenciais ou sigilosos” pela seguradora [11]. No âmbito das pessoas físicas, a própria Lei Geral de Proteção de Dados elenca os “segredos industrial e comercial” como limites ao direito de acesso aos dados manuseados (artigo 9°, inc. II) ou processados de forma automatizada (artigo 20, §1°) pelos agentes de tratamento.
Seguindo essa linha de raciocínio, consideramos que o próprio princípio da boa-fé objetiva, além dos aspectos mencionados e outros — por exemplo, de direito concorrencial — poderão justificar o não compartilhamento de algumas informações e relatórios por parte da seguradora com o segurado/beneficiário. Quando não expuser demasiadamente o segurador ou o regulador do sinistro, porém, o compartilhamento será recomendável. Tal análise deverá ser feita casuisticamente, como se disse. A carta detalhada, compondo um resumo do sinistro e os argumentos para a sua cobertura ou negativa, será invariavelmente exigível do segurador, devendo ele zelar para repassar as informações de forma clara e compreensível ao segurado/beneficiário.
Em uma sentença, o enunciado em questão peca por sua generalidade e, inobstante bem-intencionado, se não forem atentadas as diversas exceções para tal dever de compartilhamento, gerará mais efeitos nocivos do que benéficos. A ver como será feita a sua aplicação.
Publicado por ConJur
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[1] Conforme, por exemplo, o Enunciado 32 da I Jornada de Direito Administrativo: “É possível a contratação de seguro de responsabilidade civil aos administradores de empresas estatais, na forma do artigo 17, §1º, da Lei nº 13.303/2016, a qual não abrangerá a prática de atos fraudulentos de favorecimento pessoal ou práticas dolosas lesivas à companhia e ao mercado de capitais”.
[2] Confira-se, à guisa de ilustração, o Enunciado 84 da III Jornada de Direito Comercial: “O seguro contra risco de morte ou perda de integridade física de pessoas que vise garantir o direito patrimonial de terceiro ou que tenha finalidade indenizatória submete-se às regras do seguro de dano, mas o valor remanescente, quando houver, será destinado ao segurado, ao beneficiário indicado ou aos sucessores”.
[3] Cf. Jornadas de direito civil I, III, IV e V: enunciados aprovados / coordenador científico ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior. Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2012. p. 9. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/EnunciadosAprovados-Jornadas-1345.pdf. Acesso em 24/05/2022.
[4] Confira-se, nesse particular: Jornadas de Direito Civil, 2018. Disponível em: https://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-jornadas-cjf-2018_1_capCapituloIDireitoCivil.pdf. Acesso em 24/05/2022.
[5] Enunciado 170, da III Jornada de Direito Civil. “A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato”.
[6] Enunciado 187, da III Jornada de Direito Civil. “No contrato de seguro de vida, presume-se, de forma relativa, ser premeditado o suicídio cometido nos dois primeiros anos de vigência da cobertura, ressalvado ao beneficiário o ônus de demonstrar a ocorrência do chamado ‘suicídio involuntário'”.
[7] Jornadas de direito civil I, III, IV e V. op. cit. p. 9.
[8] Conforme já se pontuou em outra sede: “Mas quem ocupa, atualmente, a figura do regulador do sinistro? No Brasil, nada impede que um funcionário da seguradora atue nessa posição; pelo contrário, isso é comum. Dependendo do nível de complexidade do sinistro pode haver a contratação de reguladores externos, pessoas físicas ou jurídicas — v.g., empresas especializadas ou escritórios de advocacia — para fazer a referida tarefa. Independentemente de quem o faça, é preciso que o exame seja sempre objetivo e imparcial“. GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. Regulação do sinistro no século XXI. In: ROQUE, Andre Vasconcelos; OLIVA Milena Donato. Direito na era digital: aspectos negociais, processuais e registrais. Salvador: Juspodivm, 2022. p. 257 e ss.
[9] A normatização mais detalhada da etapa de regulação do sinistro nos seguros facultativos privados advém dos artigos 41 a 47 da Circular Susep nº 621, de 12 de fevereiro de 2021 (que dispõe sobre as regras de funcionamento e os critérios para operação das coberturas dos seguros de danos), em tópico denominado “Comunicação, regulação e liquidação de sinistros”. No que aqui interessa, ressalte-se: Artigo 46. “Caso o processo de regulação de sinistros conclua que a indenização não é devida, o segurado deverá ser comunicado formalmente, com a justificativa para o não pagamento, dentro do prazo previsto no artigo 43”. Ademais, sublinhe-se que a Resolução CNSP nº 382, de 04/03/2020 (que dispõe sobre princípios a serem observados nas práticas de conduta adotadas pelas sociedades seguradoras) afirma que os entes supervisionados devem assegurar, inclusive no processo de regulação do sinistro, a consistência de rotinas e de procedimentos operacionais afetos ao relacionamento e ao tratamento dos clientes, bem como sua adequação à política institucional de conduta (artigo 7º, inciso VIII).
[10] Assim assevera, expressamente, o inciso IV do artigo 4º da Resolução CNSP nº 407, de 29/03/ 2021 (que dispõe sobre os princípios e as características gerais para a elaboração e a comercialização de contratos de seguros de danos para cobertura de grandes riscos). Artigo 4º “Os contratos de seguro de danos para cobertura de grandes riscos serão regidos por condições contratuais livremente pactuadas entre segurados e tomadores, ou seus representantes legais, e a sociedade seguradora, devendo observar, no mínimo, os seguintes princípios e valores básicos: […] III – transparência e objetividade nas informações; IV – tratamento paritário entre as partes contratantes”.
[11] MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos seguros. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 254. Sobre o tema da transparência no setor de seguros, confira-se WANDT, Manfred. Transparency as a General Principle of Insurance Law. In: WANDT, Manfred; ÜNAN, Samim. Transparency in Insurance Law. Istanbul: AIDA, 2012. pp. 9-22.