COLUNA: SEGUROS CONTEMPORÂNEOS – SISTEMATIZAÇÃO DO AVISO DO SINISTRO AO SEGURADOR | PARTE I
01/09/2022
Introdução
A incumbência do segurado de informar o segurador da ocorrência do sinistro não é novidade no sistema jurídico brasileiro. Ela consta expressamente no CC/2002 e já constava expressamente no CC/1916.
Apesar disso, a sua previsão é mais nebulosa do que à primeira vista parece. A forma com que está prevista no CC/2002 não corresponde à forma como tem sido entendida pela doutrina e aplicada pelos tribunais. Na verdade, como se perceberá ao final, a interpretação que se dá ao dispositivo do Código vigente corresponde a um curioso retorno à previsão existente no CC/1916.
A presente coluna e a próxima visam a analisar criticamente e a sistematizar os requisitos para a perda do direito à indenização por inobservância da incumbência do segurado de informar o segurador da ocorrência do sinistro.
CC/1916
No CC/1916 havia a seguinte previsão de incumbência do segurado de informar o segurador da ocorrência de sinistro:
“Art. 1.457. verificando o sinistro, o segurado, logo que saiba, comunicá-lo-á ao segurador.
Parágrafo único. A omissão injustificada exonera o segurador, se este provar que, oportunamente avisado, lhe teria sido possível evitar, ou atenuar, as conseqüências do sinistro.”
Da leitura do dispositivo, extraem-se os seguintes requisitos para perda do direito à indenização: (1) verificação do sinistro; (2) ciência do segurado; (3) não comunicação imediata ao segurador; (4) ausência de justificativa para omissão; e (5) possibilidade do segurador de evitar ou atenuar as consequências do sinistro.
CC/2002
No CC/2002, a incumbência do segurado de informar o segurador da ocorrência de sinistro encontra-se assim previsto:
“Art. 771. Sob pena de perder o direito à indenização, o segurado participará o sinistro ao segurador, logo que o saiba, e tomará as providências imediatas para minorar-lhe as conseqüências.
Parágrafo único. Correm à conta do segurador, até o limite fixado no contrato, as despesas de salvamento conseqüente ao sinistro.”
Fora a inserção da incumbência de minorar as consequências, que não é o foco da presente coluna, há uma diferença considerável em relação à previsão do CC/1916: a alteração do parágrafo único, com a consequente não repetição dos referidos requisitos de (4) ausência de justificativa para omissão e (5) possibilidade do segurado de evitar ou atenuar as consequências do sinistro.
Essa norma corresponde em essência ao que já era previsto originalmente no PL 634/1975 (artigo 781) [1]. A redação parece ter sido baseada no artigo XII do Substitutivo ao Capítulo referente ao Contrato de Seguro no Anteprojeto de Código Civil, elaborado por Konder Comparato a pedido do Miguel Reale [2]. Nos debates parlamentares não se encontra, portanto, as razões para as mudanças em relação ao CC/1916.
Trata-se, aparentemente, de um movimento de objetivação da norma e facilitação da sua incidência sob a perspectiva da seguradora. Acontece que essa supressão acabou sendo revertida pela doutrina e jurisprudência.
Vamos então analisar um a um quais são os pressupostos exigidos para que o segurado perca o direito à indenização em caso de descumprimento da incumbência de informar o sinistro ao segurador.
(1) Ocorrência do sinistro
Em primeiro lugar, tem de ter havido sinistro, o risco assegurado tem de ter se concretizado. Como já lecionava J. M. Carvalho Santos, “a obrigação de dar o aviso pressupõe […] um momento objetivo, a verificação do sinistro previsto no contrato” [3]. Se o ônus material é de “participar o sinistro”, sem a ocorrência do sinistro não há que se falar, logicamente, em perda do direito à indenização a ele relativo.
(2) Ciência (efetiva ou potencial) do sinistro pelo segurado
Em segundo lugar, há o requisito da ciência do segurado em relação à verificação do sinistro. O artigo 771 fala que “o segurado participará o sinistro ao segurador, logo que o saiba” (itálico aditado).
Mas é necessária uma ciência efetiva ou basta que o segurado pudesse e devesse saber da verificação do sinistro?
Esse trecho do artigo 771 é idêntico ao que era previsto no artigo 1.457 do CC/1916. A doutrina dessa época defendia posição, em consonância com o sentido literal do texto legal, de que era necessária ciência efetiva. Segundo J. M. Carvalho Santos, “a obrigação de dar o aviso pressupõe […] um momento subjetivo, ou seja, o conhecimento do sinistro, da parte do segurado, mas conhecimento real e efetivo, não bastando haver suposição de que o segurado o deveria conhecer” [4].
Atualmente, porém, encontra-se posição divergente. Bruno Miragem e Luiza Petersen dão a entender que não seria indispensável a ciência efetiva, bastando que o segurado pudesse e devesse conhecer a verificação do sinistro. Em tópico sobre proteção do consumidor segurado na execução do contrato, afirmam que a obrigação de participação do sinistro deve ser considerada “de acordo com a capacidade e possibilidade concreta do consumidor de identificá-lo” [5].
Bruno Miragem e Luiza Petersen têm razão. Contudo, essa posição destoa do que está literalmente previsto no artigo 771, afinal “logo que o saiba” é diferente de dizer “logo que o saiba ou logo que pudesse e devesse saber do sinistro”. Por isso, essa posição, apesar de acertada, tem de se desincumbir de um ônus argumentativo de fundamentação.
Por conta da semelhança da problemática envolvida, para resolver essa questão, vale recorrer a uma discussão análoga em relação às duas concepções de boa-fé subjetiva: a psicológica e a ética. Como ensina António Menezes Cordeiro, “a boa-fé subjetiva podia ser usada em dois sentidos diversos: — um sentido puramente psicológico: estaria de boa-fé quem pura e simplesmente desconhecesse certo facto ou estado de coisas, por muito óbvio que fosse; — um sentido ético: só estaria de boa-fé quem se encontrasse num desconhecimento não culposo; noutros termos: é considerada de má-fé a pessoa que, com culpa, desconheça aquilo que deveria conhecer” [6].
A conceção ética, portanto, “postula a presença de deveres de cuidado e de indagação: por simples que sejam, sempre se exigiria, ao agente, uma consideração elementar pelas posições dos outros” [7].
Menezes Cordeiro apresenta três fundamentos decisivos para preferir a concepção ética da boa-fé subjetiva em detrimento da concepção psicológica:
“– a juridicidade do sistema: o Direito não associa consequências a puras casualidades como o ter ou não conhecimento de certa ocorrência; o Direito pretende intervir nas relações sociais; ora, ao lidar com uma boa-fé subjetiva ética ele está, de modo implícito, a incentivar o acatamento de deveres de cuidado e de diligência;
– a adequação do sistema: uma conceção puramente psicológica de boa-fé equivale a premiar os ignorantes, os distraídos e os egoístas, que desconheçam mesmo o mais evidente; paralelamente, ir-se-ia penalizar os diligentes, os dedicados e os argutos, que se aperceberiam do que escapa ao cidadão comum;
– a praticabilidade do sistema: não é possível (nem desejável) provar o que se passa no espírito das pessoas; assim e em última análise, nunca se poderá demonstrar que alguém conhecia ou não certo facto; apenas se poderá constatar que o sujeito considerado, dados os factos disponíveis, ou sabia ou devia saber; em qualquer das hipóteses, há má-fé” [8].
Esses três argumentos podem ser aplicados aqui à questão da ciência do segurado e também levam à conclusão de que não se deve exigir a efetiva ciência do segurado, mas apenas que ele podia e devia saber da ocorrência do sinistro: a) é melhor aceitar como requisito não só a efetiva ciência do segurado, mas também a sua ignorância indesculpável, uma vez que assim se incentiva o segurado à observância de deveres de cuidados (juridicidade do sistema); b) não se premia o segurado ignorante e distraído (adequação do sistema); e c) evita-se o obstáculo prático, muitas vezes insuperável para a seguradora, de ter de provar que o segurado efetivamente sabia da ocorrência do sinistro (praticabilidade do sistema).
Por essas razões, não só a efetiva ciência, mas também a ignorância indesculpável, satisfazem o presente requisito do artigo 771 do CC/2002.
Conclusão
Por limitações de espaço, encerramos por aqui a primeira parte da coluna. Na segunda parte vamos analisar os três requisitos que ainda faltam para completar os cinco requisitos existentes para a perda pelo segurado do direito à indenização por inobservância da incumbência de aviso do sinistro ao segurador.
Publicado por ConJur
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[1] PASSOS, Edilenice; LIMA, João Alberto de Oliveira. Memória Legislativa do Código Civil, v. 1. Brasília: Senado Federal, 2012, p. 211-212.
[2] COMPARATO, Fábio Konder. Substitutivo ao Capítulo referente ao Contrato de Seguro no Anteprojeto de Código Civil. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro, ano XI, nº 5, 1972, p. 144.
[3] CARVALHO SANTOS, João Manuel de. Código civil brasileiro interpretado, vol. XIX: direito das obrigações (arts. 1.363-1.504). 12ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1988, p. 351.
[4] CARVALHO SANTOS, Código civil brasileiro interpretado, cit., p. 351.
[5] MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos Seguros. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022, p. 127.
[6] MENEZES CORDEIRO, António Menezes. Tratado de Direito Civil I. Coimbra: Almedina, 2016, p. 965.
[7] MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil I, cit., p. 965.
[8] MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil I, cit., p. 966.