Coluna Seguros Contemporâneos: Tributação das Reservas Técnicas das Seguradoras
08/08/2024
As seguradoras são obrigadas, por força do artigo 84 do Decreto-Lei nº 73/1996 [1], a destinar parte de seus recursos para compor reservas técnicas com o objetivo de conferir uma maior garantia de solvibilidade de suas obrigações, especialmente o pagamento das indenizações decorrentes de sinistros. Assim, essas reservas são um investimento obrigatório que as seguradoras devem efetuar, geralmente em títulos da dívida pública, e delas podem provir rendimentos decorrentes de juros das aplicações financeiras, variações monetárias, entre outros.
Anos depois, o STF retomou a questão ao julgar o RE nº 609.096 [3] (Tema 372), quando foi definido que as receitas brutas operacionais decorrentes da atividade empresarial típica das empresas integram a base de cálculo do PIS e da Cofins. Por exemplo, no caso de empresas que vendem produtos ou serviços, a receita bruta seria o valor proveniente dessas vendas e, no caso das instituições financeiras, esse conceito englobaria as suas receitas financeiras.
O debate sobre a natureza jurídica das reservas técnicas
Se por um lado essas decisões conseguiram pôr um fim em parte das discussões, por outro, a decisão do STF abriu espaço para várias argumentações a respeito da base de cálculo dessas contribuições que incidem sobre o faturamento, como ocorreu com as reservas securitárias técnicas, ora em análise. A discussão versa, essencialmente, sobre a natureza jurídica das reservas técnicas das seguradoras: se forem consideradas receitas operacionais, os seus rendimentos estariam dentro do conceito de faturamento para fins de incidência de PIS e Cofins; caso contrário, não fariam parte da base de cálculo dessas contribuições, o que significaria uma relevante economia tributária para as empresas do setor.
Para as seguradoras, os rendimentos provenientes das reservas técnicas não se enquadrariam no conceito de receita bruta para fins de incidência de PIS e Cofins, pois não são decorrentes das atividades típicas do setor, tendo em vista que a sua atividade principal seria a venda de seguros. A constituição de reservas técnicas, portanto, apesar de constituir uma obrigação regulatória para a atuação securitária, não se confunde com a atividade fim das seguradoras, resultando na exclusão dessas receitas da base de cálculo do PIS e da Cofins.
Nesse mesmo sentido, Julia de Menezes Nogueira também defende que as receitas financeiras não se enquadram no conceito de faturamento, “sob pena de indevido alargamento da base de cálculo dessas contribuições, de forma ilegal e inconstitucional”[4], já que “o conceito de ‘receitas financeiras’ é ontologicamente distinto do conceito de receita operacional, decorrente da atividade” [5]. A autora explica que as receitas financeiras consistem em receitas adicionais, que, apesar de serem necessárias para a manutenção das pessoas jurídicas, não decorrem diretamente de suas atividades, sendo que sequer são geradas pelas próprias empresas beneficiárias, mas sim por outras instituições financeiras onde os recursos estão aplicados. De outro lado, as receitas operacionais são aquelas decorrentes da atividade da pessoa jurídica.
Esse entendimento está alinhado com o conceito amplamente adotado de faturamento, segundo o qual corresponderia “ao produto das atividades que integram o objeto social da empresa, ou seja, as atividades que lhe são próprias e típicas” não podendo ser alcançadas pelo PIS e pela Cofins “as receitas dissociadas ao objeto da empresa”[6]. Como as seguradoras não têm como objeto principal de suas atividades os investimentos ou as receitas financeiras deles decorrentes, esses valores não poderiam ser tributados pelas contribuições baseadas no faturamento, portanto.
Posicionamentos no STF
As discussões sobre receitas das seguradoras serem objeto de incidência de PIS e Cofins não é nova. Em 2023, o Supremo Tribunal Federal definiu, após muitas discussões judiciais sobre o assunto, que as receitas de prêmios auferidas pelas seguradoras em razão de contratos de seguro estariam abrangidas pelo conceito de faturamento, e, consequentemente, estariam sujeitas à cobrança de PIS e Cofins (RE nº 400.479/RJ [7]).
Esse caso acendeu ainda mais a controvérsia sobre a questão dos rendimentos provenientes das reservas técnicas do setor. Apesar do tema do RE nº 400.479 ser centrado na incidência das contribuições sobre os prêmios das seguradoras, o ministro Dias Toffoli, acompanhado pelo ministro Luis Roberto Barroso, fizeram ressalva em relação às reservas técnicas, mencionando que estas não fazem parte das atividades próprias do objeto social das seguradoras, mas sim constituem condição regulatória para o exercício de suas atividades.
De forma semelhante, o julgamento do Tema 372, realizado sob a sistemática da repercussão geral (RE nº 609.096 e 1.250.200), estabeleceu a incidência de PIS e Cofins sobre as receitas financeiras de instituições financeiras. O ministro Dias Toffoli, no entanto, deixou claro que “o Tema nº 372 abarca a discussão apenas ante as atividades das instituições financeiras, não envolvendo, assim, qualquer outro tipo de atividade empresarial exercida por outras pessoas jurídicas”. Apesar de elas serem equiparadas às instituições financeiras para fins regulatórios e de regime tributário, as atividades exercidas pelas seguradoras não se confundem com aquelas exercidas pelas demais instituições.
Contudo, no início de junho deste ano, esse tema voltou à tona com a decisão monocrática do ministro Luiz Fux proferida no âmbito da PET nº 9.607 [8] ao revogar uma medida liminar que impedia a União de cobrar PIS e Cofins sobre os rendimentos das reservas técnicas de uma seguradora.
Nessa decisão, o ministro fundamentou a revogação no argumento de que a liminar se pautaria na pendência da decisão do Supremo no RE nº 609.096 no sentido de que as seguradoras têm um tratamento jurídico similar ao das instituições financeiras. Uma vez publicado o acórdão, em posição desfavorável aos contribuintes, o ministro Fux entendeu que cessou a probabilidade do direito da seguradora, uma vez que a tese teria sido na contramão do pedido formulado em sua ação.
Contudo, pouco tempo depois, o próprio ministro restabeleceu essa mesma medida liminar após rever o seu entendimento sobre o assunto [9]. Nessa nova decisão, o ministro concluiu que a discussão traçada no RE nº 609.096 sobre as instituições financeiras é distinta da controvérsia acerca da incidência do PIS e Cofins sobre as reservas das seguradoras, na esteira do que tinha sido afirmado pelo min. Dias Toffoli em seu voto no próprio RE nº 609.096.
Na Reclamação nº 65.301 [10], também em curso no STF, o ministro Dias Toffoli igualmente afastou a aplicação às seguradoras do precedente firmado pela incidência de PIS e Cofins sobre os rendimentos dos bancos. Em sua decisão, o ministro deixou expresso que o RE nº 609.096 – do qual foi relator — se aplicaria apenas às instituições financeiras típicas (que praticam intermediação financeira), não abrangendo outras atividades empresariais – inclusive as das seguradoras.
Esses posicionamentos recentes dos ministros do STF, apesar de ocorrerem em âmbito de ações individuais, são relevantes pois retomam a segurança jurídica aos contribuintes, tendo em vista a grande incerteza sobre o tema até o momento.
STJ, perspectiva e pendência
Por outro lado, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça já deixou claro que possui um entendimento desfavorável aos contribuintes sobre essa questão. No julgamento recente do Recurso Especial nº 2.052.215/SP [11], os ministros entenderam que “as empresas seguradoras são equiparadas a instituições financeiras” e que a descrição do objeto social não se resumiria ao que é descrito nos seus atos constitutivos, mas incluiria também eventuais atividades tipificadas pela legislação decorrentes do maior rigor regulatório ao qual estão sujeitas.
Dessa forma, como o Decreto-lei nº 73/1996 obriga as seguradoras a instituírem e investirem suas reservas técnicas, essas reservas fariam parte das atividades operacionais das seguradoras por força legal e, por conseguinte, constituiriam receitas operacionais sujeitas à incidência do PIS e da Cofins.
Esse posicionamento da 2ª Turma do STJ, contudo, ainda não é definitivo. Foram opostos recursos que estão pendentes de julgamento e a questão ainda deve subir ao Supremo Tribunal Federal por interposição de recurso extraordinário. Outro ponto digno de nota é o fato desse julgamento tratar de uma ação individual de uma seguradora e não ter efeito vinculante, ou seja, ainda que esse entendimento se torne definitivo, ele não será de aplicação obrigatória a todos.
Portanto, a perspectiva ainda é positiva, uma vez que alguns ministros do STF já manifestaram entendimento favorável que pode levar a um posicionamento pela não-incidência do PIS e Cofins sobre esses rendimentos.
Atualmente está pendente de julgamento no âmbito do RE nº 1.479.774/RJ [12] no STF (Tema 1.309), de relatoria do ministro Luiz Fux, o qual analisará a “exigibilidade do PIS e da Cofins sobre as receitas financeiras oriundas de aplicações financeiras das reservas técnicas de empresas seguradoras”. Esse julgamento tem o potencial de ser decisivo ao adotar uma posição definitiva e erga omnes, cessando a insegurança jurídica que paira sobre o tema atualmente.
Contudo, na decisão monocrática já proferida até o momento, o recurso extraordinário foi desprovido sob o argumento de que a controvérsia representaria mera ofensa indireta à Constituição. No momento, resta pendente a análise do agravo regimental interposto pela seguradora para rever esse posicionamento.
Reforma e a regulamentação da CBS
No âmbito da reforma tributária, o tratamento deste tema ainda é incerto. Como se sabe, o PIS e a Cofins vão ser substituídos pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que terá um tratamento diferenciado da regência atual. O artigo 219 do Projeto de Lei Complementar nº 68/2024 [13], que pretende regulamentar esses tributos, prevê que o IBS e a CBS terão como base de cálculo, no regime específico dos planos de assistência de saúde, as receitas financeiras das reservas técnicas, o que poderia diminuir as esperanças do contribuinte.
Todavia, essa redação ainda não é definitiva, pois o projeto permanece em fase de deliberação no Congresso Nacional. Além disso, um eventual entendimento do STF acerca da natureza dessas receitas financeiras ainda pode resultar em uma possível declaração de inconstitucionalidade dessa previsão, caso ela seja aprovada pelas casas legislativas.
Conclusão
Como se vê, a posição dos tribunais superiores ainda é incerta sobre o tema. Embora a 2ª Turma do STJ tenha uma posição desfavorável à tese das seguradoras, no STF o posicionamento parece ser favorável, tendendo a afastar a incidência do PIS e da Cofins sobre esses rendimentos. O tema poderá assumir contornos de maior clareza no aguardado julgamento do RE nº 1.479.774/RJ, caso seja admitido o recurso extraordinário interposto pela seguradora, reconhecendo-se a ofensa direta à Constituição e ofertando-se ao STF a oportunidade de consolidar o entendimento a respeito do tema. Por fim, essa controvérsia pode assumir novos contornos com a futura regulamentação da CBS no regime específico das seguradoras.
Publicado por ConJur