DESAFIOS JURÍDICOS DOS E-SPORTS: OS DIREITOS DA PERSONALIDADE E OS ATLETAS DE JOGOS ELETRÔNICOS

31/08/2021

Do Atari ao Playstation5, os videogames foram, e ainda são, uma febre do entretenimento que carrega milhões de fãs mundo afora. A indústria dos jogos eletrônicos, ancorada nas plataformas de streaming, alterou radicalmente o modelo de negócios: as receitas passaram a vir não mais apenas da fabricação de consoles e jogos, mas das receitas com exploração de times e campeonatos de e-Sports, contratos de licensing, lives patrocinadas e transmissão ao vivo de jogos em plataformas de streaming especializadas. Símbolo da pujança econômica do setor é o recente aporte recebido pela Final Level, plataforma gamer brasileira, de R$ 8,5 milhões.

O crescimento do segmento não veio acompanhado, contudo, de madura evolução legislativa que regulasse os principais desafios jurídicos do setor. Aos advogados atuantes nos esportes eletrônicos, surgem inquietantes dúvidas jurídicas: Estariam os jogadores de e-Sports equiparados a jogadores profissionais de futebol aptos a atraírem a incidência da Lei Pelé (lei 9.615/98) e suas garantias? Os direitos da personalidade dos jogadores podem ser objetos de cessão onerosa?

Esses são somente alguns dos desafios jurídicos que orbitam ao redor do mundo dos ­e-Sports. Com o objetivo de responder esses e outros questionamentos, busca-se abordar os principais dilemas jurídicos dos e-Sports, sem a pretensão de resolvê-los, mas, sim, de fomentar o debate e refletir sobre possíveis alternativas jurídicas.

1. Jogos eletrônicos são, de fato, modalidades esportivas? 

A Federação Internacional de Esportes Eletrônicos define a prática de e-Sports como “Um esporte competitivo performado em um ambiente virtual onde habilidades físicas e mentais são utilizadas para a criação de condições vitoriosas através de regras geralmente aceitas”. Reconhecer o jogador de e-sport como atleta profissional ainda é fato que causa certa estranheza aos que não estão habituados com o segmento, talvez em razão de uma rasa e incompleta comparação da profissão de jogador ao esforço físico de um atleta convencional.

Mas qual seria, portanto, a relevância jurídica do e-sport ser considerado uma modalidade esportiva?

À época em que Pelé era o Ministro dos Esportes, foi promulgada a lei 9.615 de 1998. Com a “Lei Pelé”, pretendeu-se promover uma maior intervenção estatal nos temas relacionados à prática desportiva, com vistas a aumentar a tutela oferecida pela lei aos jogadores, passando-se a regular, por exemplo, que a participação de um atleta em uma partida de futebol deveria estar condicionada a um contrato formal de trabalho com um clube, sendo obrigatório o registro do documento junto à entidade dirigente, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), no caso de futebol de campo.

Foram relevantes as inovações trazidas pela legislação, e suas posteriores alterações, no âmbito de proteção às entidades esportivas e atletas profissionais. É o caso da faculdade conferida à entidade esportiva de constituir-se como sociedade empresária, facilitando a entrada de investimento externo e contribuindo com o desenvolvimento do clube. À época da antiga “Lei do Passe”, antecessora da Lei Pelé, permitia-se, por exemplo, que clubes exigissem valores pela transferência de atletas mesmo após o término do contrato de trabalho.

A evolução legislativa conferiu maior proteção contratual ao jogador, retirando seu “passe” da propriedade dos clubes, mas garantindo, a partir da alteração promovida pela lei 12.935/11, uma pequena parte, na forma de indenização, pelo investimento da entidade na formação do atleta. Outro relevante avanço da Lei Pelé foi determinar que os bens particulares dos dirigentes de entidades esportivas possam estar sujeitos ao disposto no artigo 50 do Código Civil, ou seja, na hipótese de eventuais abusos cometidos na gestão do time, passou a ser possível requerer-se a desconsideração da personalidade jurídica desses dirigentes.

Diferente do amadurecimento legislativo que se lançou sobre o futebol, observa-se tímida atividade legislativa sobre a prática de e-Sports no Brasil e não há lei que defina a prática profissional de jogos eletrônicos como modalidade esportiva mesmo que a evolução e a constante profissionalização dos eventos esportivos do setor sejam notórias.

Nota-se, portanto, que o rol de garantias conferidos aos atletas de futebol pela Lei Pelé poderia, de forma benfazeja, aplicar-se aos jogadores de e-Sports, encerrando de uma só vez a leitura rasa de que jogadores de e-Sports não são atletas e que não fazem jus ao amplo rol de direitos e garantias conferidas aos atletas de futebol. Alteração legislativa na Lei Pelé que, nesse sentido, pudesse dar segurança jurídica aos jogadores de e-Sports seria extremamente bem-vinda.

Ao passo que o mercado de games cresce, surge a necessidade de formalizar e conferir segurança às relações entre os indivíduos atuantes neste universo. A promulgação de assemelhada lei conferiria status de modalidade esportiva aos e-Sports, possibilitando a inclusão da modalidade em políticas públicas de incentivo à prática desportiva, conferindo proteção às equipes e aos e-Atletas, além de ir de encontro com a prática adotada em outros países.

2. Jogadores de e-Sports e direitos da personalidade: direito de imagem e direito de arena.

Os direitos da personalidade devem ser entendidos, na lição do professor Gustavo Tepedino, “como especificação analítica da cláusula geral de tutela da personalidade prevista no Texto Constitucional e contida nos arts. 1.º, III (dignidade da pessoa humana como valor fundamental da República), 3º, III (igualdade substancial) e 5º, §2º (mecanismo de expansão do rol dos direitos fundamentais).” A personalidade, dessa forma, representa o valor máximo do ordenamento, sendo modeladora da autonomia privada.

O ordenamento assegura ao indivíduo a tutela do direito à própria imagem, vedando sua divulgação não autorizada por qualquer meio – fotografia, cinema, gravação no vídeo – e reprimindo a infração como atentado à privacidade. A súmula 403 do Superior Tribunal de Justiça, v.g., dispensa a necessidade de prova do prejuízo causado para que seja devida indenização à vítima que teve sua imagem publicada sem autorização.

Os enunciados 278 da IV Jornada de Direito Civil e 587 da VII Jornada de Direito Civil do CJF, por seu turno, conceituam, respectivamente, que constitui violação a direito da personalidade a publicidade que divulgar, sem autorização, qualidades inerentes a determinada pessoa e que o dano à imagem resta configurado quando da utilização indevida desse bem jurídico, independentemente da concomitante lesão a outro direito da personalidade, sendo dispensável a prova do prejuízo do lesado ou do lucro do ofensor para a caracterização do referido dano, por se tratar de modalidade de dano in re ipsa.

A natureza da atividade profissional exercida pelos e-Atletas, quando da participação em partidas transmitidas via streaming e em campeonatos profissionais, está intimamente ligada à utilização de sua imagem para fins comerciais e econômicos. Lives e streamings de jogos digitais sob remuneração são as principais formas de receitas do segmento para atletas intermediários, que ainda não ostentem patrocínios diretos de terceiros.

Nessas hipóteses, o jogador autoriza o uso e cede o uso patrimonial de alguns de seus direitos da personalidade, como nome, imagem, som de voz, semblante, caricatura, assinatura e outros atributos.

A redação do artigo 11 do Código Civil prevê, em letra fria da lei, a irrenunciabilidade e a intransmissibilidade dos direitos da personalidade, determinando que seu exercício não pode “sofrer limitação voluntária”. Em interpretação estritamente literal, chegar-se-ia à conclusão equivocada e simplista de que os direitos da personalidade dos e-Atletas cuidam-se de direitos indisponíveis, por não admitirem transmissão ou alienação. Entretanto, essa indisponibilidade “deve ser compreendida em perspectiva relativizada, apenas impedindo que o titular possa deles dispor em caráter permanente ou total, sem que se dele retire a possibilidade de prática de um certo nível de disponibilidade”.

Ampliando a interpretação de tais direitos da personalidade, dispõe o enunciado 4 do CJF que “o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral”. Logo, como evidencia o enunciado, ao contrário da interpretação literal do artigo 11 do Código Civil, os bens jurídicos da personalidade podem ser objeto de negócios jurídicos.

Observadas, portanto, peculiaridades inerentes às situações existenciais, a disponibilidade dos direitos da personalidade implica em matéria eminentemente contratual, autorizando que o e-atleta possa celebrar contratos com equipes, campeonatos ou mesmo parceiros comerciais, para dispor de parcela da expressão patrimonial de seus bens jurídicos da personalidade.

O direito de arena dos jogadores de e-Sports: A proteção específica à imagem do atleta, que quando vinculado à uma equipe, participa de partidas e campeonatos, está prevista no artigo 42 da Lei Pelé que prevê que “Pertence às entidades de prática desportiva o direito de arena, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem.” O direito de arena, é aquele proveniente da participação dos atletas profissionais nas transmissões desportivas, cujo escopo é justamente vedar a utilização comercial indevida de suas imagens sem a correspectiva indenização.

A diferença entre direito de imagem e direito de arena está no fato de que este é propriedade do time, consubstanciando-se no direito de comercialização da imagem de seus atletas como bem intangível. O direito de imagem do Atleta, por outro lado, é direito personalíssimo, inalienável, passível de cessão onerosa, se assim optar o titular. Constitui, a expressão exterior sensível da individualidade humana, digna de proteção jurídica.

Ao passo que os campeonatos de e-Sports atingem proporções semelhantes de grandes eventos esportivos convencionais – lotam arenas e estádios e começam a veicular propagandas de gigantesco alcance – torna-se ainda mais necessária a promulgação de instrumento legislativo que confira segurança jurídica aos jogadores para receberem a adequada remuneração pelo seu direito de arena no âmbito dos jogos eletrônicos.

O já profissionalizado mercado de games padece de legislação específica que confira o direito de arena à equipe e ao e-atleta, conferindo risco de dano à sua imagem e a sua honra, sem que haja previsão legal impondo o dever de indenizar.

No mesmo sentido, a Confederação Brasileira de e-Sports – CBeS se manifestou:

“A ausência de uma norma específica não pode impedir a prática da atividade esportiva. Isso porque as manifestações sociais e esportivas sempre são antecessoras a qualquer regulamentação jurídica, e mesmo que necessária dentro de um sistema de organização e regulamentação das práticas no país, é preciso compreender as formas que essa atividade se desenvolve e sua adaptação interdisciplinar entre as demais leis já existentes. Isso porque a própria lei 9.615/98 possui elementos de definição, regulamentação, direitos e obrigações perfeitamente adaptáveis à prática do e-Sports e da forma de relacionamento entre os atletas profissionais e suas equipes”.

Por fim, da mesma forma que a visão funcionalizada dos direitos da personalidade não pode ser vista de forma estanque, vez que estes evoluem concomitantemente às novas formas de contratação, deve o legislador ter em mente a proteção dos direitos dos atletas de e-Sports, não esquecendo, todavia, da possibilidade dos e-Atletas de dispor dos direitos atrelados à sua imagem-atributo.

Publicado por Migalhas