QUEM É O BENEFICIÁRIO DO SEGURO-CONDOMÍNIO?
29/05/2024
O contrato de “seguro-condomínio” revela-se tema, sem dúvidas, caro à administração do condomínio edilício. Afinal, segundo o Código Civil, é obrigatório o seguro contra o risco de incêndio responsável por causar a destruição, total ou parcialmente, do prédio (art. 1346, CC). Sua relevância é acentuada pela realidade de mercado – a qual compreende a possibilidade de aumento da cobertura securitária obrigatória –, e pela tendência social de buscar seguros para prevenção ou solidarização de riscos. Nessa perspectiva, revela-se cada vez mais comum a ocorrência de diversos fatos jurídicos naturais, até mais corriqueiros do que o incêndio – como, por exemplo, um vendaval, chuvas intensas -, configurarem um sinistro gerando direito ao capital segurado.
Entretanto, ao receber tal montante, não raro surge à dúvida para o síndico e para o conselho fiscal: a quem pertence a indenização? De um lado, afirma-se com tranquilidade que é a partir da quota condominial que se custeia o prêmio do seguro, resposta cujo emprego do valor em benefício de todos os condôminos favoreceria. De outro, inexiste dúvida sobre a composição do condomínio edilício, formada por partes de propriedade comum e outras de propriedade exclusiva, principal característica do instituto, segundo o próprio art. 1331, CC, bem como consolidada doutrina. Sendo assim, tal argumento seria hábil a assegurar o reparo dos danos à unidade individual.
A resposta não se encontra positivada de maneira clarividente na lei, mas a norma regulatória indica o caminho a ser traçado. Neste sentido, a Circular SUSEP n° 620/2020 prevê que o seguro condomínio: “(…) destinado à edificação ou ao conjunto de edificações, abrangendo todas as unidades autônomas e partes comuns, destinadas a fins residenciais ou não residenciais”.
Ou seja, a própria regra, infralegal, securitária remete ao conceito de condomínio edilício, consagrado expressamente no art. 1331, CC. Com efeito, importante resgatar as noções da matéria para encontrar uma solução à problemática suscitada.
Por meio de concepção basilares relacionadas às disciplinas de direitos reais e dos contratos, conclui-se inexistir qualquer razão dogmática que justifique vedar a destinação do capital segurado para recompor danos à propriedade particular. Segundo distinta perspectiva, determinadas situações tornam essa destinação verdadeiro dever da administração condominial. Há, contudo, inevitável preferência da reparação aos danos causados à propriedade coletiva.
Dito em outras palavras, quando a reparação dos danos à propriedade coletiva exigir o emprego de todo o capital segurado efetivamente pago, sem restar qualquer valor capaz de indenizar o proprietário particular, a preferência supracitada opera a integralidade de seus efeitos. De outro lado, caso reconstruam-se as áreas coletivas do edifício, havendo a “sobra” de uma quantia supérflua, o saldo deve ser empregado na indenização dos danos particulares. Enfim, quando só a propriedade individual sofrer prejuízos surgirá o dever de utilizar a indenização securitária para repará-la.
Se não, veja-se. A preferência à indenização dos danos sofridos pela propriedade coletiva justifica-se pelo objetivo de garantir o interesse de todos os condôminos na manutenção do patrimônio comum, os quais, em última análise, contribuíram para o recebimento da indenização securitária. Isso porque, o prêmio do seguro só é pago ante o pagamento das taxas condominiais. O emprego do montante indenizatório passa a realizar a mesma função primeira atribuída à cota condominial – a contribuição às despesas comuns (art. 1336, inciso I, CC).
De igual modo, há de se atentar à formação do contrato ora em estudo como fundamento da proposta defendida. Nessa linha, quando o condomínio celebra, por meio do síndico, o negócio securitário, terá dois objetivos claros, simultâneos ou independentes. Ou se busca obedecer a lei ou se pretende atender a vontade dos condôminos, expressa por voto majoritário em assembleia, ou busca se realizar os dois propósitos (afinal, em última análise, a lei pretende atender a coletividade de condôminos, além dos interesses sociais, ao exigir o seguro obrigatório). Logo, sem obrigação legal, nem a concordância da maioria dos condôminos que pretendam aumentar a cobertura mínima e cogente do seguro-condomínio, não há sequer título jurídico que justifique a validade e a eficácia do negócio ora analisado.
Diante das duas hipóteses mencionadas, sustenta-se a primazia do emprego da indenização securitária, paga como efeito jurídico da contratação de seguro-condomínio, na recomposição dos danos à propriedade comum do edifício. Afinal, ao contratar o seguro obrigatório o síndico está cumprindo um dos deveres cujo art. 1348, CC (inciso IX) impõe. Com efeito, a leitura teleológica do dispositivo legal não deixa dúvida de que todas as obrigações ali impostas referem-se à tutela do bem coletivo dos condôminos antes de se proteger a propriedade individual considerada por si só.
Segundo distinto viés, a decisão assemblear voltada à ampliação da cobertura securitária revela-se expressão da autonomia privada coletiva, destinada a resguardar a convivência geral dentro do condomínio edilício, bem como dos espaços físicos onde ela ocorre. Portanto, a recomposição de tais espaços revela-se função primordial cujo seguro contratado deve realizar.
Assim, são as citadas noções basilares de direito condominial que orientam duas conclusões sobre o tema estudado, as quais, após desenvolvidas, ora se sintetiza. I) O sinistro que prejudica apenas a propriedade coletiva gera indenização que deve, prioritariamente, reparar o prejuízo suportado pela propriedade comum – sob pena de o síndico ou conselho descumprirem, inclusive, seus deveres legais, respondendo por essa conduta. Em razão de idênticos motivos, II) quando o sinistro causar danos concomitantes às duas espécies de propriedade existentes no condomínio edilício, isto é, à propriedade comum e à propriedade exclusiva, primeiro os valores devem ser empregados para recomposição dos bens comuns, depois para reparação do proprietário individual.
No entanto, fora dessas hipóteses, permite-se, também, a indenização aos danos à propriedade individual, conforme já se antecipou de forma breve. Mais do que isso, empregar o capital segurado desta maneira revela-se verdadeiro dever imputável aos administradores do condomínio, afirmativa que se justifica no conceito de causa do contrato entendida como função prático-econômica do negócio.
Assim, primeiro, há de se apontar a qualificação do seguro-condomínio dentro de um dos tipos contratuais expressamente previstos no Código Civil, a saber: o seguro de danos (arts. 778 a 788, CC). Tendo em vista o entendimento de que a função prático econômica deste contrato típico é a proteção da coisa ou bem segurado contra riscos hábeis a destruir ou diminuir sua utilidade, o negócio específico ora estudado servirá, certamente, para essa finalidade.
Logo, deixa de haver dúvida. Se o bem segurado é a totalidade das instalações do condomínio e o perfil funcional do contrato mencionado vincula-se à tutela dos danos que atingiram o objeto do seguro, isto significa a reparação de danos as áreas comuns e particulares. Tal conclusão se extrai por meio do cotejo entre a causa do tipo negocial ora debatido com o supracitado conceito de condomínio edilício cuja lei prevê no art. 1331, CC.
É este, aliás, o grande traço distintivo do tipo negocial em discussão. O mero recebimento da indenização securitária por um sujeito individual não revela desvio de finalidade pelo simples motivo de o prêmio do seguro ser pago por meio dos recursos da coletividade de condôminos. À luz de distinto viés, complementa a resposta dogmática acima desenvolvida o fato de que o negócio securitário se considera contrato aleatório– ou seja, marcado pela incerteza a respeito de quem se beneficiará do capital segurado.
Quanto ao seguro condomínio, tal estado de coisas se projeta não só entre segurador e segurado, mas também entre os beneficiários (condôminos). É dizer que, mediante deliberação coletiva, cada condômino prefere pagar o seguro, mesmo que o beneficiário da indenização não seja ele, mas sim outra pessoa, lesada pelo sinistro, ao invés de sujeitar-se à possibilidade de sofrer um dano e arcar sozinho, em única parcela, com pesado montante.
Assim, se todos os condôminos se encontram submetidos à aleatoriedade, tornando-se potenciais beneficiários da indenização securitária, ou abstratamente elegíveis para receber o capital segurado, atende-se, de certo modo, os interesses de um grupo que almeja, também, a tutela dos seus direitos individuais. Com efeito, será esse o raciocínio que deve guiar a assembleia ao contratar o aumento de cobertura do seguro-condomínio.
Desta forma, a partir do arcabouço jurídico exposto revela-se devida a destinação do capital segurado ao condômino cuja unidade autônoma foi a única parte do condomínio edilício danificada pela ocorrência do risco coberto pelo contrato de seguro.
Aliás, este repasse configura-se verdadeiro dever da administração condominial – mera tomadora, ou contratante, do seguro-condomínio, e empregar valores recebidos em favor de um ou diversos terceiros. Conduta diversa ou até mesmo a retenção dessa cifra por parte do condomínio edilício, importa em desobedecer a própria função primária- indenizatória de danos a bens segurados – atribuída ao tipo securitário estudado.
Por último, mas não menos importante, ressalte-se que o quadro apresentado a priori comporta algumas modulações a partir de decisões assembleares. De tal modo, por exemplo, os condôminos podem modificar a preferência antes mencionada, estabelecendo a destinação prioritária da indenização advinda do contrato de seguro ao proprietário individual atingido pelos possíveis sinistros previstos na contratação. Embora à primeira vista a escolha suscitada apresente-se como improvável, trata-se de estratégia a se considerar, principalmente em condomínios menores sem área comum expressiva ou dotada de maiores utilidades.
Outras discussões ainda devem surgir na esteira das latentes mudanças climáticas sentidas em solo pátrio e no exterior. Diante da miríade de infortúnios que podem atingir a propriedade coletiva ou particular, sem a participação humana, considere-se, a título ilustrativo, a possibilidade de vedar o recebimento do capital segurado por condômino inadimplente, o qual sofreu com um vendaval ou com chuvas torrenciais. De outro lado, é viável pensar se seria vedada a diminuição do objeto segurado – para, por exemplo, limitá-lo às áreas comuns. O exemplo, apesar de intrigante, foge ao escopo do presente trabalho.
De todo modo, intentou-se, com este texto, chamar atenção a um tema ainda pouco desenvolvido, mas permeado por questões instigantes. Ao mesmo tempo, buscou-se, apresentar orientações práticas e dogmáticas iniciais a quem tenha de lidar com a prática do seguro-condomínio. Encerra-se, portanto, na esperança de auxiliar à construção de respostas úteis à resolução de problemas nesta importante seara socioeconômica do trânsito negocial.
Caio Ribeiro Pires
Rodrigo da Mata