Coluna Migalhas Securitárias | Transação penal e seguro D&O sob a Lei nº 15.040/2024

19/11/2025

A questão posta é compreender, com rigor técnico e sem aderências casuísticas, como a adesão de administradores a uma transação penal repercute na extensão da cobertura do seguro D&O após a lei 15.040/24. O eixo analítico é duplo: de um lado, a natureza jurídica da transação penal, que não veicula juízo de culpabilidade, não encerra confissão e não produz condenação transitada em julgado; de outro, os comandos cogentes da nova lei de seguros, que redesenham com maior nitidez o que é segurável, como se delimitam os deveres de aviso e cooperação, de que forma se estrutura a defesa em seguros de responsabilidade civil e quais são os pressupostos probatórios para qualquer restrição de cobertura.

Como pano de fundo setorial, a experiência anterior à lei 15.040/24 registrou oferta de cobertura para multas civis e administrativas no D&O, especialmente após a circular SUSEP 541/16, o que reforça que a vedação legal atual incide especificamente sobre penalidades de índole criminal, permanecendo as multas administrativas sujeitas a desenho contratual compatível com a lei vigente. Já à luz da circular SUSEP 637/21, convém explicitar que as faculdades regulatórias relativas a custos de defesa, cláusulas de multas e formas de liquidação por sentença, laudo arbitral ou acordo com anuência da seguradora subsistem, mas passam a operar subordinadas à lei 15.040/24, de modo que penalidades criminais se mantêm sem cobertura, enquanto multas administrativas não penais dependem de compatibilização contratual e regulatória.

Sob a perspectiva estritamente sancionatória, a lei 15.040/24 estabelece um corte objetivo que não pode ser relativizado por estipulação contratual. São nulas as garantias que tenham por objeto valores de multas e outras penalidades aplicadas por atos pessoais do segurado que caracterizem ilícito criminal, bem como aquelas que pretendam cobrir risco de ato doloso do próprio segurado (art. 10, § único, I e II).

A consequência é direta e não depende das condições gerais de contratação: a prestação pecuniária ajustada na Transação Penal, ainda que não traduza condenação, possui natureza sancionatória e, por essa razão, não é indenizável, nos termos do referido artigo 10. O comando legal afasta a discussão sobre “consentimento prévio” especificamente quanto a esse dispêndio. Não se trata de negar cobertura por descumprimento contratual, mas de reconhecer a indisponibilidade legal do objeto segurado.

Esse recorte, contudo, não esgota o tema, pois a lei 15.040/24 também disciplina, de modo sistemático e favorável à segurança jurídica, a arquitetura da cobertura de RC – responsabilidade civil. O diploma reconhece expressamente que o risco em RC pode se caracterizar pela imputação de responsabilidade, e não apenas pela ocorrência ou manifestação danosa (art. 98, caput e § 1º), e impõe que a garantia de gastos com defesa seja estruturada em sublimite específico, distinto daquele destinado à indenização dos prejudicados (art. 98, § 2º).

Esse desenho normativo reforça entendimento já presente nas apólices de D&O: a cobertura de defesa não se confunde com a cobertura de condenações, vive em compartimento próprio e é acionável precisamente quando há imputação, inclusive penal, desde que ausentes confissão inequívoca de dolo e decisão final de culpabilidade. Em outras palavras, a transação penal, por si só, não é gatilho de exclusão da defesa; ao contrário, é cenário típico em que a cobertura de defesa, se contratada, demonstra sua razão de ser limitada ao sublimite específico.

A natureza da transação penal é decisiva. Enquanto o acordo de não persecução penal exige confissão formal e circunstanciada como requisito de validade (CPP, art. 28-A) e a suspensão condicional do processo pressupõe denúncia e suspensão condicionada (lei 9.099/1995, arts. 89 e 90), a transação penal é instituto pré-processual que evita a instauração do processo e não importa juízo de culpabilidade (lei 9.099/1995, art. 76).

Nem confissão, nem condenação, nem formação de antecedentes. Por isso, do ponto de vista contratual, a hipótese de exclusão por “confissão formal” ou “decisão transitada em julgado” não se realiza, deslocando a discussão útil para o campo da defesa: o que se pode reembolsar, sob que limites e em quais condições.

Nessa vertente, a lei 15.040/24 edifica um regime de colaboração que substitui automatismos por exame de causalidade e de prejuízo. O segurado em RC deve informar prontamente comunicações relevantes, franquear documentos, comparecer a atos e abster-se de condutas que prejudiquem a posição da seguradora. O descumprimento desses deveres não autoriza, por si só, a perda da cobertura, mas acarreta responsabilidade pelos prejuízos efetivamente causados à seguradora (arts. 100 e 101).

No tocante à escolha de patronos, a circular SUSEP 637/21 exige que o contrato preveja livre escolha de advogado ou utilização de profissionais referenciados, desde que com critérios razoáveis de honorários, o que se coaduna com a eficiência de custos sem sacrificar a autonomia técnica da defesa. É válida, ainda, a previsão contratual de ressarcimento dos adiantamentos de defesa caso se comprove, a posteriori, que os danos decorreram de ato doloso do segurado, coexistindo com a exigência de prova de prejuízo para restrições durante a tramitação.

Importa também separar o regime do agravamento do risco. A nova lei impõe o dever de comunicar agravamentos relevantes tão logo conhecidos, confere à seguradora prazo de vinte dias para ajustar prêmio ou resolver o contrato, e condiciona a perda da garantia à omissão dolosa do aviso (arts. 13 e 14, § 3º). Para negar indenização com base em agravamento, exige-se prova do nexo causal entre esse agravamento e o sinistro (art. 16). Trata-se de debate distinto da adesão a uma transação penal no curso de investigação, pois aqui não se discute alteração do estado do risco, mas atos de gestão do sinistro e da própria defesa.

Com esse panorama normativo e contratual delineado, o enquadramento do caso deixa de ser fragmentado e passa a seguir um raciocínio consequente: a prestação pecuniária ajustada na Transação Penal não pode ser objeto de reembolso, pois constitui despesa atingida pela nulidade prevista no art. 10 da lei 15.040/24. Essa vedação é objetiva e independe de qualquer consentimento ou estipulação contratual em sentido diverso.

As despesas de defesa, por sua vez, conservam-se indenizáveis no sublimite específico enquanto não sobrevier confissão inequívoca ou decisão final reconhecendo dolo ou proveito indevido, e desde que não haja demonstração precisa e causal de prejuízo concreto decorrente de eventual inobservância dos deveres de comunicação e cooperação. A negativa ampla e abstrata por falta de consentimento prévio, sem prova de dano, não encontra amparo no novo regime.

Do ponto de vista de governança, a solução técnica é clara: formalizar a segregação de verbas, negando o reembolso de valores com natureza sancionatória penal e processando a defesa no compartimento próprio, com controles de razoabilidade e necessidade, reservas adequadas e monitoramento do desfecho consensual. A comunicação com a seguradora deve ser institucionalizada em fluxo contínuo e tempestivo, não apenas para cumprir a lei, mas para preservar oportunidades negociais e reduzir fricção probatória sobre eventual prejuízo. A linguagem das peças deve evitar qualquer formulação que possa ser interpretada como confissão de dolo, sem impedir a obtenção célere do resultado útil do acordo.

O acompanhamento posterior, incluindo homologação, cumprimento e eventuais desdobramentos, não é mera burocracia, mas instrumento de preservação da cobertura. Se nada emerge além do acordo, consolidam-se a extinção da punibilidade e a irrelevância das cláusulas de exclusão atreladas a confissão e trânsito em julgado.

Em síntese, a lei 15.040/24 retirou o tema do terreno das presunções e o devolveu ao trilho da legalidade estrita. Onde a lei veda, a apólice não supre; onde a lei admite, a apólice organiza. O que não pode ser segurado, como multas e penalidades criminais e atos dolosos do segurado, permanece fora do contrato, ainda que travestido de condição consensual. O que pode, como a defesa contra imputações, submete-se a limites próprios e a um regime de cooperação que exige, para qualquer restrição, prova de prejuízo real.

É por esse prisma que a transação penal deixa de ser uma anomalia interpretativa e passa a ser tratada como o que é: um instrumento consensual, sem confissão e sem condenação, incapaz de franquear o reembolso de penalidades, mas apto a acionar a cobertura de custos de defesa nos seguros D&O.

Publicado em Migalhas

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