Volume de processos por ‘erro médico’ cresce no Judiciário

28/02/2024

Brasil registrou, em 2023, cerca de 25 mil processos por “erro médico” – ou danos materiais ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde, denominação que passou a ser adotada neste ano pelo Judiciário. O volume representa alta de 35% em relação a 2020, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Nos últimos quatro anos foram 91 mil ações. Os pedidos de indenização são altos e tendem a se concentrar no setor privado, onde as condenações são maiores e estão 70% dos processos.

Estudo com dados do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) analisou 4,5 mil processos por “erro médico” e encontrou pedidos de R$ 16 milhões em indenizações por danos morais entre 2020 e 2022, chegando a um valor médio R$ 35 mil por cada processo.

O Judiciário deixou de adotar o termo “erro médico” porque entidades que representam a categoria alegaram que, com base na Tabela Processual Unificada, que traz as classificações processuais, envolveria também processos apresentados contra hospitais (públicos e privados) e profissionais de outras categorias da saúde.

Advogados especializados em saúde reconhecem um aumento no número de casos desde a pandemia da covid-19, com ações desse tipo atraindo novas gerações de advogados e profissionais egressos de outras áreas. Os processos, afirmam os especialistas, são considerados complicados, caros, demorados e de alto risco, mas viáveis em muitos casos.

Nos Estados Unidos, processos por “erro médico” são um filão tradicional na advocacia e tratados como uma espécie de investimento. Escritórios anunciam serviços fazendo estimativas de custo e benefício: gasto inicial entre US$ 50 mil e US$ 100 mil e indenização final entre US$ 250 mil e US$ 400 mil. Uma pesquisa publicada pela revista Health Affairs em 2010 calculou em US$ 55 bilhões o volume pago por erro médico nos EUA, 2,4% do custo do sistema de saúde.

No Brasil, as limitações à propaganda da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) evitam campanhas ostensivas de captação de clientes ao estilo americano, mas o tema não deixa de preocupar. Grandes hospitais investem em “compliance médico” e protocolos de prevenção. Uma das iniciativas é o “Prêmio Júlia Lima”, lançado pelo Hospital Albert Einstein em 2019 – cujo nome é uma homenagem a uma vítima de erro médico -, para estimular boas práticas e segurança do paciente.

Segundo Henderson Fürst, presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB, iniciativas como a do Einstein estão na vanguarda e visam reduzir não só a judicialização, mas crises de imagem associadas. Contudo, ainda há hospitais que fazem cálculos de custo-benefício e deixam a conta do “erro médico” na mão de seguros de responsabilidade civil. “Muitos médicos não estão preparados para fazer compliance e reduzir riscos”, diz.

Fürst vê mudanças nos últimos anos, com mais ações, advogados iniciantes no ramo e técnicas de captação de clientes vendendo a ideia de dinheiro fácil por erros comuns – como falta de assinatura do “termo de consentimento” (autorização para a realização de algum procedimento). Mas de modo geral, Fürst acredita que os processos são motivados por uma insatisfação do paciente com o resultado do procedimento e falta de comunicação adequada. O problema, para Füst, é falta de diálogo entre médico e paciente.

“Muitas vezes o paciente quer é expressar uma insatisfação, quer desabafar, falar com o médico. Chama de erro médico, mas na verdade não houve um problema”, diz o advogado. Em muitos casos é comum depois da audiência o hospital fechar um acordo por um valor simbólico.

Outro elemento que contribui para a expansão da litigiosidade é o volume enorme de incidentes ocorridos no sistema de saúde. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) coleta há alguns anos dados de “incidentes relacionados à saúde”, com informações sobre falhas na assistência à saúde, erros em procedimentos e outros problemas. O resultado é de 342 mil notificações por ano.

Um levantamento feito pelo advogado Victor Vieira, da empresa de pesquisa em jurisprudência e jurimetria Juit, reuniu 4,5 mil decisões sobre “erro médico” do TJSP e encontrou um cenário, ainda assim, mais favorável às instituições médicas. “A conclusão mais importante é de que as instituições de saúde têm uma taxa de provimento de seus recursos maior do que os pacientes. O Judiciário tende a ser mais simpático às instituições de saúde”, afirma Vieira.

As indenizações mais altas chegam a valores entre R$ 250 mil e R$ 300 mil, mas no extremo oposto há valores como R$ 1 mil e R$ 250. O valor intermediário entre a condenação mais alta e a mais baixa fica entre R$ 15 mil e R$ 20 mil. A pesquisa constata que a segunda instância da Justiça paulista tende a reduzir o valor das condenações mais do que aumentar.

Os recursos à segunda instância funcionam mais para hospitais do que para pacientes. Pacientes têm seu recurso negado em quase 72% dos casos e as instituições de saúde em 51% das vezes.

Um caso foi analisado recentemente pela 9ª Câmara de Direito Privado do TJSP. O colegiado manteve decisão condenando uma empresa de serviços em saúde a indenizar uma paciente diagnosticada equivocadamente com câncer nos ossos e tratada sem necessidade por seis anos, com graves efeitos colaterais. A indenização por danos morais foi fixada em R$ 200 mil e os danos materiais em R$ 17,9 mil (processo nº 1016242-76.2020.8.26.0564).

As dificuldades em conseguir bons resultados em processos por erro médico fazem alguns advogados desistirem. Rodrigo Araújo, advogado especializado em direito da saúde, já teve muitos clientes de “erro médico”, mas hoje evita processos do tipo. São processos longos, entre 5 e 10 anos de duração, provas difíceis e muitos recursos protelatórios. Não é incomum a anulação de perícias técnicas, que custam entre R$ 8 mil e R$ 18 mil cada uma.

Ele também acredita haver um corporativismo entre os médicos, que dificulta a obtenção de laudos periciais isentos. Um cliente seu foi diagnosticado com aneurisma em um hospital de ponta em São Paulo, e encaminhado para cirurgia urgente. Sem tempo para muitos preparativos e exames prévios, a cirurgia teve complicações e hoje o paciente vive com sequelas graves. O parecerista nomeado pelo juiz reconheceu que não havia urgência na cirurgia, mas inocentou o colega, alegando que o hospital “tinha condições” para fazer o procedimento.

O advogado Marcos Patullo, sócio do Vilhena Silva Advogados, recebe muitos clientes em seu escritório com casos de “erro médico”, mas só algumas vezes recomenda abrir um processo. O principal problema é a dificuldade de produzir provas. É preciso levantar pareceres, registros e comprovar a correlação entre conduta e dano. “Uma coisa é existir um erro médico, outra coisa é conseguir provar.”

Tatiana Luz, sócia do NHM Advogados diz que, juridicamente, a atividade médica é considerada uma atividade de meio, não de fim. Ou seja, o médico é responsável pela execução de uma tarefa, não pelo seu resultado. Em cirurgia plástica, o tema ainda está em aberto, mas em outras áreas está pacificado: uma coisa é o procedimento médico, outra coisa como o corpo do paciente reage. “A dificuldade é configurar o erro médico”, diz.

Publicado em Valor Econômico

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