O interesse em agir nas ações de cobrança de indenização securitária

14/03/2024

Introdução

Dúvida intrigante no âmbito do Direito dos Seguros é a seguinte: na ocorrência do sinistro, o segurado terá que, obrigatoriamente, acionar a seguradora em sede administrativa para a regulação do sinistro ou poderá diretamente ingressar com uma ação judicial pleiteando a indenização securitária?

Este artigo pretende examinar essa questão, tendo como pano de fundo o julgamento dos Recursos Especiais 2.050.513-MT [1] e 2.059.502–MT [2], de relatoria da ministra Nancy Andrighi, do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Porém, antes de analisar os seus contornos, convém tecermos algumas notas sobre o interesse processual na prática jurídica.

Direito de agir e direito de ação: pontos essenciais sobre necessidade, adequação e interesse processual no Judiciário

Como se sabe, há um direito constitucional que assegura a todos a possibilidade de levar as suas pretensões ao Judiciário: o direito de agir. O direito de ação, de maneira diferente, consiste no direito ao processo e a um julgamento de mérito e é satisfeito com a prolação de uma sentença favorável ou não ao autor. Todavia, para a viabilidade da ação, é imperiosa a presença de suas condições, que consistem na legitimidade para e no interesse em agir. [3]

O interesse em agir é um interesse processual e tem como objetivo o provimento judicial como forma de se ver satisfeito um interesse primário ofendido pelo comportamento da parte adversa. Ressalta-se, contudo, que o interesse processual não deve ser confundido com o interesse material, que se estabelece no plano do direito substantivo. Em um processo judicial, a análise do interesse material é feita no mérito, que pode resultar em total ou parcial procedência ou improcedência dos pedidos realizados pelo autor. [4]

“Interesse, em direito, é utilidade.” [5] E, para verificar se há interesse em agir na demanda, existem dois fatores que servem de base: a necessidade e a adequação. Com relação à necessidade da tutela jurisdicional, se dá pela impossibilidade de satisfação do alegado direito sem a intervenção estatal. Já quanto à adequação, manifesta-se no sentido de existir uma relação entre a situação alegada pelo autor em juízo e o provimento jurisdicional concretamente requerido. [6]

A análise sobre a presença da necessidade da jurisdição se entrelaça com a ideia de que a solução adjudicada deve ser vista como a última forma de resolver uma controvérsia, a ultima ratio no processo compositivo da lide. Todavia, tal assertiva só é aplicável às situações nas quais tem-se como objetivo exercer, por meio do processo, direito a uma prestação, uma vez que há a possibilidade de seu cumprimento espontaneamente. [7]

Harmonizando com essa premissa, o STF, em 2014, julgou o Recurso Extraordinário nº 631.240-MG, firmando entendimento no sentido de que nas ações previdenciárias, em regra, a falta de postulação administrativa de benefício previdenciário acarreta ausência de interesse em agir, para aqueles que recorrem diretamente ao Judiciário.

Isso ocorre devido à pretensão autoral não estar abarcada pelo elemento que configura a resistência por parte da autarquia previdenciária à referida pretensão. Ponto importante é que o requerimento administrativo não deve se confundir com o exaurimento das vias administrativas. [8]

Antes mesmo do julgamento do recurso pelo Supremo, o professor e desembargador Federal Aluísio Mendes já sustentava a constitucionalidade das condições da ação e da exigência do interesse — da lide ou pretensão resistida —, decidindo, quando da sua atuação em primeira instância, nesse sentido, mas tendo, infelizmente, uma série de sentenças modificadas.

Há, em contraposição, a garantia constitucional de acesso à justiça, prevista no art. 5º, XXXV, [9] da CF, porém, segundo ele, “somente a resistência da parte contrária, caracterizada pela negativa após o prévio requerimento administrativo ou pela excessiva demora na sua apreciação, teria o condão de caracterizar efetiva lesão ao direito.” [10]

Em verdade, a compreensão de que a pretensão resistida se faz necessária para o ingresso no Judiciário não é recente. A Constituição de 1969, no § 4º do artigo 153 [11] (incluído pela EC nº 7/1977), condicionava o ingresso em juízo ao exaurimento das vias administrativas.

Anteriormente à constitucionalização da referida exigência, tal prática já era prevista em algumas outras disposições, como no artigo 223, do Decreto-Lei nº 1.713/1939 e no artigo 15, da Lei n° 5.316/1967.

Com a redemocratização, manteve-se a exigência de esgotamento da esfera administrativa apenas no âmbito da Justiça Desportiva (artigo 217, §§ 1º e 2º, da CF/1988) e, a posteriori, para a impetração de habeas data (artigo 8º, da Lei nº 9.507/97) e para reclamação contra descumprimento de súmula vinculante (artigo 7º, § 1º, da Lei nº 11.417/2006).

A apreciação do RE nº 631.240-MG fez com que o STF (Supremo Tribunal Federal) voltasse os olhos à racionalidade intrínseca do interesse em agir como uma das condições da ação e, com isso, a ratio decidendi compreendida no citado julgamento foi aplicada também aos casos envolvendo a cobrança de indenização do seguro Dpvat. [12]

Indo além, a questão da pretensão resistida como requisito para ingresso em juízo se tornou objeto de projeto de lei (PL nº 533/2019, de autoria do senador Júlio Delgado), no qual se pretende alterar o Código de Processo Civil para incluir um parágrafo no artigo 17, determinando que, “em caso de direitos patrimoniais disponíveis, para haver interesse processual é necessário ficar evidenciada a resistência do réu em satisfazer a pretensão do autor.”

Busca-se, com isso, inserir na lei o conceito de pretensão resistida, que se traduz na demonstração, pelo autor da ação, de que houve tentativa de solucionar o conflito extrajudicialmente.

Recentemente, o STJ replicou o entendimento firmado pelo Supremo, quanto à concessão de benefícios previdenciários e indenizações de seguro Dpvat, para os demais casos que tratam do ajuizamento de ações para cobrar indenizações securitárias.

A ministra Nancy Andrighi, nos REsps 2.050.513-MT e 2.059.502–MT, pronunciou-se afirmando que para a configuração do interesse em agir nas ações de cobrança de indenização securitária, se faz necessário o prévio requerimento administrativo, conforme examinado a seguir.

Notificação prévia à seguradora: requisito essencial para o direito de ação em indenizações securitárias

Ambos os recursos especiais mencionados dizem respeito a cobranças de indenização securitária de seguro de vida em grupo, por conta da ocorrência de doenças ocupacionais incapacitantes. Nos acórdãos, validou-se o entendimento de que pode a petição inicial ser indeferida e julgado extinto o feito sem resolução do mérito, com fundamento no art. 485, I, do CPC, devido ao não cumprimento à determinação do juízo para que fosse emendada a inicial, demonstrando a existência de prévio requerimento administrativo.

A ministra fundamenta o seu voto utilizando-se do Código Civil que, em seu artigo 771, impõe ao segurado o dever de comunicar o sinistro à seguradora assim que toma conhecimento de sua ocorrência, sob pena da perda do direito à indenização.

Uma vez que o aviso de sinistro configura o pedido de pagamento da indenização securitária, se não é feito, a seguradora não pode ser compelida a pagar, pois se presume que ela não terá tido oportunidade de regular o sinistro, [13] tampouco terá tido conhecimento da ocorrência do evento.

Assim, não se concretiza lesão a direito ou interesse do segurado. Acionado o Judiciário antes de realizado o aviso de sinistro, portanto, caberá a extinção do processo sem resolução do mérito, por ausência de interesse processual (artigo 485, VI, do CPC).

O CPC/1973, no artigo 267, VI, já estabelecia como causa de extinção do processo sem resolução do mérito a ausência de qualquer das condições da ação, incluindo a falta de interesse em agir. No CPC/2015, a ausência das condições da ação permanece sendo razão para a extinção do processo sem resolução de mérito, em consonância com o que estabelece o artigo 17 do mesmo diploma legal: “para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade”.

A análise da presença do interesse processual é um importante filtro para demandas inúteis e desnecessárias, por isso mesmo, o CPC/2015 admite o indeferimento da petição inicial pela falta de interesse de agir (artigo 330, III) e, caso seja identificada a falta de interesse de agir posteriormente, poderá o magistrado extinguir o processo sem resolução do mérito (artigo 485, VI).

Ocorre que, no caso das ações de cobrança de indenização securitária, conforme explicita a relatora, “Se já tiver se operado a citação da seguradora, eventual oposição desta ao pedido de indenização deixa clara a sua resistência frente à pretensão do segurado, evidenciando a presença do interesse de agir.

Porém, nem sempre a resposta da seguradora implicará impugnação ao pedido de pagamento. É possível por exemplo, que ela invoque a ausência de prévia solicitação administrativa, hipótese em que caberá a extinção do processo sem resolução do mérito, por ausência de interesse processual”.

Um processo é feito de momentos e, na prática, o problema que se observa é que, caso a seguradora seja citada e apresente a sua contestação apenas alegando a falta de interesse em agir do autor, não sendo o processo extinto com fundamento no artigo 485, VI, poderá a vir ser prejudicada por não se defender quanto ao mérito da questão.

Isso em razão do princípio da concentração, previsto pelo art. 336, do CPC, que estabelece que o réu, em sede de contestação, apresente “toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir”, sob pena de preclusão.

Ademais, cabe sublinhar que a seguradora tem um prazo de 30 (trinta) dias para realizar a análise do sinistro (artigo 48 da Circular Susep nº 667/2022, no âmbito dos seguros de pessoas e artigo 43 da Circular Susep nº 621/2021, nos seguros de danos) e, por vezes, diante da complexidade do caso concreto, necessita requisitar documentos complementares e até mesmo realizar perícia a fim de apurar ser devida ou não, a indenização ao segurado. Por isso mesmo, a verificação, pela seguradora, sobre o que é alegado na petição inicial pode ser inconclusiva.

É possível deduzir, portanto, que, pelo entendimento firmado pela 3ª Turma do STJ, existe espaço para uma postura mais ativa dos magistrados de primeira instância, a fim de que, logo de início, já se determine ao autor a comprovação da realização do aviso de sinistro à seguradora, sob pena de indeferimento da petição inicial por ausência de interesse processual. E caso a seguradora seja citada e apresente como único argumento defensivo a falta de interesse em agir por ausência de requerimento administrativo da referida indenização, o processo seja extinto sem resolução de mérito por faltar interesse.

Com essa abordagem, privilegia-se o princípio da boa-fé e da cooperação, bem como é possível evitar diversas demandas judiciais desnecessárias, já que muitas questões podem ser solucionadas de forma simples e rápida através de procedimentos administrativos.

Tal prática não impede, de forma alguma, o exercício do direito de acesso à justiça. Pelo contrário, auxilia o Poder Judiciário ao permitir que se concentre em casos nos quais sua intervenção é realmente indispensável. Além disso, resulta em economia de recursos, uma vez que recorrer ao Judiciário acarreta custos processuais e honorários advocatícios, afetando tanto seguradores como segurados.

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[1] STJ, REsp 2050513/MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª turma, j. 25/04/2023, DJe 27/04/2023.

[2] STJ, REsp 2059502/MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª turma, j. 03/10/2023, DJe 09/10/2023.

[3] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo civil. Volume 1. Teoria do processo civil. p. 233/234.

[4] PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Manual de Direito Processual Civil Contemporâneo. – 4ª ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2022. p. 208.

[5] DINAMARCO, Cândido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Inahy; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Processo. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2023. p. 324.

[6] DINAMARCO, Cândido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Inahy; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Processo. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2023. p. 324/325.

[7] DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento, Vol. 1 – 23. Ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2021. P. 476.

[8] “A concessão de benefícios previdenciários depende de requerimento do interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a direito antes de sua apreciação e indeferimento pelo INSS, ou se excedido o prazo legal para sua análise. É bem de ver, no entanto, que a exigência de prévio requerimento não se confunde com o exaurimento das vias administrativas.” (STF, RE 631240/MG, Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. 03/09/2014, DJe. 10/11/2014).

[9] Art. 5º, XXXV, da CF de 1988: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

[10] MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; SILVA, Jorge Luis da Costa. Acesso à justiça e necessidade de prévio requerimento administrativo: o interesse como condição da ação – comentários ao recurso extraordinário nº 631.240, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Rio de Janeiro. Ano 14. Volume 21. Número 3. Setembro a Dezembro de 2020.

[11] Art. 153, § 4º, da CF de 1969: “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual. O ingresso em juízo poderá ser condicionado a que se exauram previamente as vias administrativas, desde que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de cento e oitenta dias para a decisão sobre o pedido”.

[12] “Inexiste uma das condições da ação, pois que não houve indícios de que fora realizado qualquer pedido administrativo perante a Seguradora reclamada.” (STF, RE 839314/MA, Rel. Min. Luiz Fux, j. 10/10/2014, Dje. 16/10/2014).

[13] A dinâmica do processo de regulação do sinistro é explicada da seguinte forma pela doutrina: “Didaticamente, é possível ilustrar a usual sequência de acontecimentos da seguinte maneira: após a ocorrência do sinistro, o segurado faz o seu aviso diretamente ao segurador ou ao corretor de seguros, que o repassará ao segurador, acompanhado da entrega de alguns documentos, conforme a modalidade de seguro envolta no caso concreto.5 O exame de tais documentos e das condições do sinistro será feito pelo regulador do sinistro. Na sequência, o regulador irá emitir um relatório que será utilizado como guia para a efetiva, ainda que parcial, cobertura do sinistro pelo segurador ou a sua recusa, que necessariamente terá quer ser fundamentada.

Caso o segurado não concorde com a decisão do segurador, poderá tomar algumas medidas na seara administrativa, tais quais a reclamação na ouvidoria da seguradora, no Procon e no site Consumidor.gov.br, e, ainda, recorrer à via judicial, por meio de uma ação de cobrança (eventualmente cumulada com pedido de compensação por danos morais). No âmbito extrajudicial, a reclamação geralmente é avaliada de forma célere, com a obtenção de um retorno formal da queixa em menos de um mês. A solução do litígio, todavia, poderá em alguns casos ser alcançada definitivamente apenas por meio judicial”. GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. Regulação do sinistro no século XXI. In: ROQUE, Andre Vasconcelos; OLIVA Milena Donato. Direito na era digital: aspectos negociais, processuais e registrais. Salvador: Juspodivm, 2022. p. 260.

Publicado em Conjur

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