O OCASO DA “MÁXIMA” BOA-FÉ NOS CONTRATOS DE SEGURO

09/11/2023

A atuação da boa-fé nos contratos de seguro é tão impactante que costuma ser qualificada: fala-se, no Brasil, de uma máxima boa-fé. A indigitada noção possui origem no Direito inglês e, não obstante tenha sido ecoada em vários países, vem enfrentando resistência nos últimos tempos. Antes de abordar essa polêmica, convêm fazer uma breve contextualização [1].

Naquele que é considerado o primeiro tratado referente aos seguros (escrito no ano de 1552), ao solucionar determinado problema, Pedro Santarém afirmou: “Não por olhar à natureza do contrato, mas aquela boa fé, que muito especialmente os mercadores devem observar” [2]. É ainda mais antiga, porém, a menção à necessidade da boa-fé, especialmente nos seguros marítimos.

Com efeito, podem ser citados, v.g., o Statuto Dell’Uffizio di Mercanzia di Firenze Sull’assicurazione di navi e merci straniere (1393), que seria a fonte mais vetusta de que se tem conhecimento com menção à necessidade da boa-fé no contrato de seguro, a Ordenação de Philippe II, da Antuérpia (1570), a Ordenação de Amsterdam (1598) e o Guidon de la Mer (1556 e 1584) [3].

A noção de “máxima” boa-fé (utmost good faith” ou “uberrima fides”)[4], por sua vez, é usualmente atribuída ao leading case inglês Carter vs Boehm (1766). Todavia, a literatura especializada demonstra que Willian Murray (Lord Mansfield, Chief Justice of the King’s Bench durante o período de 1756 a 1788) não utilizou tal expressão ou outra equivalente (v.g., purest good faith) no referido caso. Embora seja alvo de acesa controvérsia, a expressão aparentemente teria sido empregada pela primeira vez, na Inglaterra, em Wolff vs Horncastle, em ação julgada por Buller J. em 1798 [5]. Ao longo do século XIX, a doutrina da máxima boa-fé ganhou progressivo terreno na jurisprudência desse país e foi legalmente consagrada no Marine Insurance Act de 1906 (seção 17). Na sequência, a noção foi transposta do seguro marítimo para o seguro terrestre, se replicou em inúmeras latitudes e, durante um período, foi detentora de grande prestígio internacional [6].

A doutrina da máxima boa-fé não foi inicialmente acolhida de maneira legislativa por aqui. O Código Comercial brasileiro de 1850, nesse sentido, é exemplar. Embora tenha um artigo relativo à boa-fé como critério interpretativo, foi omisso ao tratar dos seguros marítimos (artigos 666 a 730). O mesmo se diga do esboço de Teixeira de Freitas (1864), que não dispunha de preceito próprio para os seguros, referenciando-o apenas tangencialmente, como um dos exemplos de contratos aleatórios (art. 2.271).

Por outro lado, o Código Civil de 1916, apesar de não ter consagrado um princípio da boa-fé nos contratos, fez menção à sua incidência em caráter geral a um único contrato em espécie, justamente o seguro (artigo 1.443). Eis os seus termos: “O segurado e o segurador são obrigados a guardar no contrato a mais estrita boa fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes”.

Em passagem sucinta de seu Código Civil Comentado, Clovis Bevilaqua afirma que o artigo 1.443 do CC de 1916 teve como fontes inspiradoras o artigo 508 do Código Civil de Zurich (1855), o artigo 9° da Lei belga de seguros (1874) e o artigo 933 do projeto Coelho Rodrigues [7]. Ocorre que essas duas leis estrangeiras, na verdade, não faziam menção alguma a uma máxima boa-fé. No projeto Coelho Rodrigues, constava que as partes contratantes de um seguro eram obrigadas a guardar a “mais restricta sinceridade e boa fé” [8], o que já se encontrava em alguma doutrina pátria em relação às causas mercantis em geral [9].

Como será discutido no próximo tópico, atualmente há sérias dúvidas quanto à conveniência de manter a noção de máxima boa-fé nos contratos de seguro.

Declínio da noção de máxima boa-fé nos seguros

Historicamente, a dependência de informações providas pelo segurado para o contrato ser firmado em termos adequados, a potencialidade de os comportamentos do segurado influenciarem diretamente na ocorrência ou não do sinistro — ou, ao menos, na probabilidade de sua concretização —, e o fato desse vínculo geralmente se qualificar como de longa duração, colocavam, quando somados, os seguradores em uma posição de vulnerabilidade e, por isso, contribuíram para o florescimento da “máxima” boa-fé nas relações securitárias.

Na sua origem, a noção estava muito ligada ao dever pré-contratual de informação dos segurados, tendo poucas consequências práticas para as exigências de comportamentos dos seguradores. Gradualmente, seus contornos foram mudando e, no contexto atual, é indiscutível, independentemente de sua qualificação, a via de mão dupla da boa-fé, bem como os seus influxos ao longo de todo o vínculo contratual, inclusive nas fases anteriores e posteriores ao contrato.

O que tem sido mais e mais debatido é se, consolidado o princípio da boa-fé nos países de civil law, faria sentido manter esse conceito de máxima boa-fé nas relações securitárias, proveniente do common law. Entre inquietantes dúvidas, destaque-se: seria possível a gradação da boa-fé? O seguro demandaria parâmetro de conduta particular, ou seja, uma boa-fé qualificada? Quais seriam os reais impactos de uma qualificação nesse sentido? Considerando a amplitude da boa-fé objetiva presente no direito contratual brasileiro contemporâneo, haveria benefício na manutenção dessa noção?

Não se pretende, na presente coluna, analisar exaustivamente o tema. Buscar-se-á, tão somente, convidar o leitor a refletir sobre a conveniência da repetição dessa noção de máxima boa-fé nos seguros, ainda que seja, como por vezes tem ocorrido mais recentemente, para justificar padrões de conduta mais diligentes por parte dos seguradores.

Retornando ao contexto do Direito inglês, é relevante destacar que neste país não existia e ainda não existe um princípio geral de boa-fé contratual e um dever de informação anterior ao vínculo negocial. Conforme adverte Christina Twigg-Flesner: “With the exception of a small category of contracts uberrimae fidei, English contract law does not have a general duty of disclosure in the pre-contractual context, reflecting its adversarial rather than co-operative ethic” [10].

Como poderia o nascedouro da máxima boa-fé nos seguros não agasalhar o princípio geral da boa-fé nas relações contratuais? O paradoxo é meramente aparente. Foram justamente as especificidades dessa relação contratual e a ausência de uma boa-fé em geral que contribuíram para a qualificação dos seguros, entre outros poucos vínculos obrigacionais, como um contrato de “utmost good faith”, afastando assim a máxima caveat emptor (“toma cuidado, comprador”). Esse conceito ganhou tanta força que acabou sendo adotado, ainda que de forma indireta e justificável dentro de seu contexto histórico, por muitos outros países.

Na doutrina portuguesa, por exemplo, Margarida Lima Rego se opõe expressamente à aplicação do conceito de máxima boa-fé nos seguros. Após fazer alusão a Halperin e Morandi, que “mostram o seu espanto com as explicações que são avançadas por alguma doutrina sobre o significado desta qualificação, «como se existissem contratos que fosse possível executar com má intenção e subterfúgios (!)»”, afirma a autora:

Note-se que, até mesmo no seio do common law, se duvida actualmente da especialidade que tem este princípio no domínio dos seguros, desenvolvido no contexto muito específico dos primórdios do mercado do Lloyd’s de Londres, em que, essencialmente, os proprietários dos navios e respectivas cargas se seguravam uns aos outros, e posteriormente plasmado na s. 17 do Marine Insurance Act de 1906. FRIEDMANN, Good Faith, p. 311, observa que o princípio da máxima boa fé surgiu em direito inglês, no domínio do contrato de seguro, por contraposição à máxima caveat emptor — let the buyer beware — que reinava à época no restante direito dos contratos. BROWN em BROWN/MENEZES, Insurance Law, p. 1-3, afirma que o princípio perdeu algum do seu significado porque, por um lado, os actuais níveis de protecção ao consumidor reduziram, de uma forma geral, a importância do princípio contra o qual fora criado o da máxima boa fé — let the buyer beware — e que, por outro lado, a sofisticação da indústria seguradora moderna dispensa a protecção de que os anteriores seguradores careceriam. Por seu lado, Botes, na monografia que dedica ao tema, Utmost Good Faith, salienta que o princípio nunca representou, no common law, um maius relativamente ao princípio da boa fé presente na tradição dos países de civil law, mas antes algo que poderia aproximadamente qualificar-se como o seu equivalente inglês, que, se nunca chegou a vingar no direito geral dos contratos, teve melhor sorte no domínio mais restrito, primeiro dos seguros marítimos, e mais tarde dos seguros em geral [11].

Maria Inês de Oliveira Martins, também à luz do Direito dos Seguros português, menciona a necessidade de se reduzir as invocações à uberrimae fidei “às suas devidas proporções”:

Com efeito, se no Direito inglês a categoria dos contratos de “utmost good faith” demarca o conjunto dos contratos em que a boa fé impõe às partes especiais deveres de cooperação, já à face de ordens jurídicas que subordinam todos os negócios jurídicos ao parâmetro da boa-fé (§ 242 do BGB, artigos 236° e 762° do CC português, 113° e 422° do CC brasileiro), parece deslocado afirmar que um contrato seja “mais de boa fé” do que outros. Numa ordem jurídica como a alemã, onde a fertilidade do princípio foi particularmente patente nos últimos cem anos, tornou-se moeda corrente assinalar o caráter meramente retórico de tal superlatividade da boa fé em sede de contrato de seguro. De resto, com a codificação do Direito dos seguros e a positivação destas exigências de conduta, a mobilização de tal parâmetro foi acusada de se ter tornado falha de fundamento prático [12].

Como última referência, cite-se Kevin Bork e Manfred Wandt, tratando em detalhes sobre o tema no contexto do ordenamento jurídico alemão:

“The meaning of the principle of utmost good faith remained vague through centuries and will neither be clarified by this analysis. Yet, the analysis will answer the question, whether a principle like utmost good faith has any standing in German contract law, with the conclusion that such a principle does not exist in German contract law. (…) German contract law does not entail a principle of utmost good faith in a sense of a duty of increased good faith. However, the nature of the contract is decisive to evaluate the specifications of good faith and all contracts, whatsoever, are strongly influenced by the principle of good faith” [13].

O autor deste artigo concorda plenamente com as observações feitas, tanto no que diz respeito ao desafio de diferenciar padrões de boa-fé, como no que se refere à grande envergadura do princípio geral da boa-fé objetiva, também no contexto do Direito brasileiro, o que torna desnecessário recorrer à boa-fé qualificada na atualidade.

Some-se, ainda, que, apesar de em alguns julgados brasileiros constar, de forma genérica, que a boa-fé assume “maior relevo” no contrato de seguro, e a caraterística de estar disposta a necessidade da “mais estrita boa-fé” no artigo 765 do CC de 2002, certo é que não é retirada nenhuma consequência específica da boa-fé qualificada na práxis brasileira.

Conclusão

Se, durante um período no qual não havia um princípio geral da boa-fé objetiva nos contratos, justificava-se o apelo à noção de máxima boa-fé nos seguros, de resto consagrada legalmente, no contexto atual esse parece constituir um artifício retórico, desprovido de efetivas consequências. Ou seja, com o perdão do jogo de palavras, apenas para inglês ver.

Dito isso, advirta-se que não se está defendendo que ambas as partes — segurado e segurador — teriam deixado de estar vinculadas a rigorosos deveres de cooperação e a uma grande confiança negocial. Tampouco se considera que, à luz do ordenamento jurídico brasileiro posto, estaria equivocada tal classificação, ou que, especialmente na ausência de boa-fé subjetiva em sua concepção ética, as sanções punitivas dispostas em lei para os segurados e os seguradores deveriam ser afastadas.

O que se pretendeu registrar é a clara tendência de que o conceito em questão perca importância — o que, na prática, não fará diferença.

[1] O presente artigo retoma, seguindo de perto, tópico anteriormente examinado em: JUNQUEIRA, Thiago. Comentários ao artigo 765 do Código Civil. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. Direito dos Seguros: comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2023. pp. 220-223.

[2] SANTARÉM, Pedro. Tractatus de Assecurationibus et Sponsionibus, 3° ed. (trad. Port). Lisboa: Instituto de Seguros de Portugal, 2006. p. 163.

[3] MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos seguros. Rio de Janeiro: Forense, 2022. pp. 158-159. A origem da noção da boa-fé é quase imemorial, perdendo-se nas brumas da antiguidade. A “árdua e ingrata” evolução histórica (do direito romano à atualidade) desse princípio foi, na medida do possível, tirada da sombra na doutrina portuguesa pela obra resultante da tese de doutorado de CORDEIRO, António Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1984 (reimp. 2011). pp. 55-403. Na doutrina brasileira, é de consulta obrigatória MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação, 2ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

[4] Sobre o uso da expressão latina em questão, confira-se a provocação da doutrina: (…) a rule requiring ‘uberrima fides’ from a contracting party is more impressive sounding than one merely requiring the exercise of the ‘utmost good faith'”. HASSON, R. A. The doctrine of uberrima fides in insurance law – a critical evaluation. The modern law review, vol. 32, 1969. p. 615.

[5] BENNETT, Howard. The three ages of Utmost Good Faith. In: MITCHELL, Charles; WATTERSON, Stephen (eds). The World of Maritime and Commercial Law: Essays in Honour of Francis Rose. London: Hart Publishing, 2020. p. 66.

[6] Na Inglaterra, a máxima boa-fé continua tendo relevo considerável.

[7] BEVILAQUA, Clovis. Codigo Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. vol. V. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1926. p. 205.

[8] No projeto Coelho Rodrigues, apresentado em 1893, constava (artigo 933): “O segurado e o segurador são obrigados a guardar no respectivo contrato a mais restricta sinceridade e boa fé, tanto a respeito do objecto, como das circumstancias e das declarações pertinentes”. O autor, que, ao receber a missão de fazer o projeto de um Código Civil foi para Zurich, teria sido influenciado pelo seu Código Civil. Para conferir a literalidade dos artigos do CC de Zurich (rectius, Código de Direito Privado do Cantão de Zurique) e da Lei belga, consulte-se MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. op. cit. p. 25.

[9] CAMILO JUNIOR, Ruy Pereira. A recepção dos ‘Principios de Direito Mercantil e Leis de Marinha’, do Visconde de Cairu, pelos comercialistas brasileiros dos séculos XIX e XX. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 112, p. 126, jan./dez., 2017.

[10] TWIGG-FLESNER, Christian. The Europeanisation of contract law: current controversies in law, 2 ed. New York: Routledge, 2013. p. 146. Em sentido convergente: “Lord Mansfield was at the time attempting to import into English commercial law the civil law notion of good faith, but this ultimately proved unsuccessful and only survived for a very limited class of transactions, including insurance”. LOWRY, John. Whither the duty of good faith in UK insurance contracts. Connecticut insurance law journal, vol. 16, 1, 2009. p. 98.

[11] REGO, Margarida Lima. Contrato de Seguros e Terceiros: estudos de direito civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. p. 441.

[12] MARTINS, Maria Inês de Oliveira. Contrato de Seguro e Conduta dos Sujeitos Ligados ao Risco. Coimbra: Almedina, 2018. pp. 168 e 853.

[13] BORK, Kevin; WANDT, Manfred. “Utmost” good faith in German contract law. ZVersWiss, 109, pp. 244 e 253, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1007/s12297-020-00478-6. Acesso em: 05/11/2023.

Publicado em Conjur 

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