SP cria grupo para integrar comitês de bioética e unificar decisões clínicas na rede pública

26/11/2025

A Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo publicou nesta terça-feira (25) a Portaria nº 847/2025, que cria um grupo de trabalho dedicado a organizar e integrar os comitês de bioética clínica da rede municipal. Esses comitês são estruturas internas de hospitais destinadas a orientar decisões delicadas da prática médica, como limites terapêuticos, conflitos de autonomia do paciente e dilemas éticos em situações de risco.

A medida pretende padronizar procedimentos hoje dispersos entre unidades, fortalecer a segurança do paciente e aproximar a gestão municipal de referenciais internacionais de bioética. A iniciativa segue diretrizes da Constituição Federal, da Lei Orgânica da Saúde e de recomendações do Conselho Federal de Medicina e da UNESCO.

“A integração futura dos comitês de bioética nas diferentes unidades da rede pública será fundamental para garantir maior coerência, segurança e justiça nas decisões clínicas. Ao criar um eixo unificado de análise ética, a rede evitará que casos semelhantes recebam tratamentos distintos apenas pela ausência de diálogo entre equipes ou pela falta de parâmetros comuns”, afirma Ronaldo Piber, advogado na KCortez Consultoria Jurídica, mestre em Direito Médico, especialista em Bioética, Direito Médico e da Saúde e vice-presidente da Comissão de Direito à Saúde da OAB/SP – subseção Pinheiros.

Para o advogado, essa articulação permitirá que dilemas complexos — como limitações de recursos, definição de prioridades assistenciais, conflitos de autonomia e disputas familiares — sejam avaliados com maior profundidade e consistência, reduzindo incertezas e fortalecendo a confiança de profissionais e pacientes no sistema

Ao criar o grupo, a Secretaria busca responder a um problema conhecido na saúde pública: decisões éticas críticas são frequentemente tomadas sem orientação institucional uniforme. A integração facilitará a análise de casos complexos e evitará tratamentos desiguais para situações equivalentes dentro da rede SUS municipal.

A portaria determina que o grupo elabore o projeto de implantação do Comitê Municipal de Bioética Clínica, responsável por formular orientações gerais, apoiar comissões hospitalares já existentes e criar novas unidades onde houver demanda. Na prática, o novo comitê será uma instância de referência para dilemas como recusa de tratamentos, conflitos entre familiares e equipes médicas, limites de procedimentos em pacientes vulneráveis e protocolos de fim de vida.

“A criação de um comitê municipal de bioética clínica não altera a responsabilidade jurídica das instituições, mas oferece um espaço qualificado para orientar conflitos e isso é levado em consideração quando se avalia cada caso”, explica Henderson Fürst, advogado especialista em Bioética, Biodireito, Direito Médico, da Saúde, life sciences e sócio do Chalfin Goldberg Vainboim Advogados.

O texto também determina que sejam mapeadas as comissões hospitalares já instaladas e estabelecidas diretrizes técnicas para ampliar o modelo. A proposta inclui a criação de materiais administrativos, fluxos internos e políticas de formação em bioética para profissionais da rede municipal. Isso significa que médicos, enfermeiros e demais equipes de saúde receberão orientação estruturada para lidar com dilemas éticos que, até então, dependiam quase exclusivamente de experiência individual.

A importância dessa integração também se reflete na prevenção de conflitos. “A bioética permite que pontos de tensão sejam avaliados sob perspectiva preventiva, reduzindo a judicialização penal e fortalecendo a compreensão humanizada das relações no cuidado”, afirma Ana Carolina Moreira Santos, advogada criminalista e presidente da Comissão de Direito à Saúde – Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção de Pinheiros.

A portaria prevê ainda articulação com Núcleos de Segurança do Paciente e setores responsáveis por denúncias e relatos de usuários, como as ouvidorias. Na prática, a bioética passa a dialogar com a gestão de risco, com a integridade profissional e com a proteção de direitos dos usuários, reforçando que decisões éticas não se restringem ao campo teórico: elas influenciam diretamente o cuidado diário.

O grupo de trabalho funcionará sem custos adicionais e poderá receber especialistas externos em bioética para fins consultivos. A composição reúne representantes da sociedade civil, profissionais convidados e servidores da Secretaria Municipal da Saúde.

Entre os membros indicados estão pesquisadores, médicos, advogados e servidores técnicos. A coordenação será definida na primeira reunião, e o grupo deverá apresentar relatório preliminar em 60 dias, prazo prorrogável.

A iniciativa reforça o movimento de expansão dos mecanismos de governança ética em sistemas de saúde. No Brasil, comissões de bioética ainda são desiguais entre regiões e instituições, e municípios com redes extensas, como São Paulo, enfrentam desafios adicionais para padronizar condutas.

Ao institucionalizar um comitê municipal, o governo local busca alinhar a prática assistencial a padrões internacionais, como a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, da UNESCO, que recomenda a adoção de estruturas de deliberação ética para proteger autonomia, dignidade e justiça no atendimento.

As comissões hospitalares de bioética já existentes continuarão funcionando, mas deverão ser integradas ao novo desenho. A harmonização dessas instâncias significa que recomendações poderão circular entre unidades, evitando contradições e melhorando a previsibilidade de decisões clínicas sensíveis.

O avanço também acompanha mudanças recentes no Código de Ética Médica e no Código de Ética de Enfermagem, que reforçam a necessidade de instituições oferecerem suporte estruturado para decisões complexas. Para a Secretaria, fortalecer a bioética na rede é parte de um esforço mais amplo de humanização e qualificação da assistência.

Além de criar o comitê municipal, o grupo deverá elaborar um regimento interno, estabelecer fluxos de encaminhamento e propor instrumentos administrativos. Na prática, isso envolve criar desde manuais operacionais até algoritmos de decisão clínica, materiais educacionais e métodos de registro dos casos analisados.

Como a portaria prevê articulação com ouvidorias e núcleos de segurança do paciente, espera-se que as comissões também atuem como instâncias de prevenção de conflitos e melhoria contínua da qualidade do atendimento.

De acordo com os especialistas, a medida aproxima São Paulo de experiências adotadas em grandes sistemas internacionais de saúde, como Espanha e Canadá, onde comitês de bioética são obrigatórios em hospitais públicos. No Brasil, a recomendação do CFM existe desde 2015, mas a adoção ainda é baixa. Com a regulamentação municipal, o tema deixa de depender de decisões isoladas das unidades e passa a ter coordenação centralizada, com perspectiva de expansão e integração.

Publicado em LexLegal

Compartilhe nas suas redes sociais

LinkedInFacebook