Coluna Migalhas Securitárias | Seguro em favor de terceiro na Lei nº 15.040/2024

24/10/2025

Introdução

Os arts. 24 a 32 da lei 15.040/24, lei que alguns denominam por marco legal dos seguros – o que faz outros interpretarem ser ela o nascedouro do disciplinamento da matéria, equivocadamente, por óbvio -, constituem a Seção V que é, para nós, de relevante interesse.

Embora pudéssemos discorrer sobre cada um dos artigos da referida cessão, focaremos naquilo que nos parece mais importante para não transformar o que deve ser objeto de meras considerações em longuíssimo ensaio.

A Seção abriga várias espécies de seguro em favor de terceiro – que, em princípio, regula o que no CC se denomina “Seguro a conta de outrem”.

Nesta seção pode-se enquadrar, por exemplo, o seguro denominado APP – Acidentes Pessoais a Passageiros, que garante o interesse contra os riscos de invalidez e morte por acidente dos ocupantes de um determinado veículo, estando garantido contra os riscos também o próprio contratante do seguro, espécie conhecida como seguro sobre quem corresponder. Neste exemplo, os segurados, passageiros, são conhecidos apenas no momento da ocorrência do sinistro, e não no momento da contratação. Ou, por outro exemplo, o detentor do interesse é conhecido desde logo. É o caso do locatário que celebra seguro de incêndio para garantir interesses sobre a edificação e sobre seu conteúdo. Sendo ele o contratante, normalmente é qualificado, nas apólices de seguro, como segurado, mas na verdade se trata de outro seguro em favor de terceiro, conjugado com um seguro por conta própria. Titular do interesse sobre o conteúdo do prédio será, em regra, o locatário, mas o titular do interesse sobre a edificação será o locador, proprietário, ainda que ele não figure na apólice nem mesmo como beneficiário. A diferença neste exemplo em relação ao anterior é que o terceiro, a favor de quem se contratou a garantia contra os riscos ao prédio, é desde logo conhecido – o locador, proprietário do prédio -, repita-se. Observe-se, apenas, que, no primeiro exemplo, o interesse segurado é o mesmo, podendo ser vários os seus titulares; já no segundo exemplo, há interesses diversos para distintos segurados (locatário e locador).

É possível apontar, também, que estejam regulados nessa Seção seguros que se distinguem dos seguros a conta de outrem típicos, porque o risco recai sobre a pessoa do estipulante, porém com destinação obrigatória do capital ao beneficiário indicado, daí porque também tenha sido considerado pelo legislador como um seguro em favor de terceiro.1 O interesse segurado não seria, então, e também neste caso, do estipulante, e sim do beneficiário.

Explique-se: o seguro a conta de outrem, como o conhecemos, é espécie que se encontra na categoria dos seguros de dano, e o risco incide sobre o bem da vida que de maneira alguma afeta o estipulante se o sinistro vier a ocorrer. Já no seguro sobre a própria vida, por exemplo, embora o interesse seja também do beneficiário indicado a título oneroso, o risco recai sobre a vida do estipulante. Mas, repita-se, sem dúvida se trata de um seguro a favor de terceiro, sendo este o titular do interesse garantido.

E regula, ainda, o seguro coletivo, ou em grupo, que, mesmo que se queira considerá-lo seguro em favor de terceiro, seria espécie sui generis dessa categoria, já que ele não é celebrado a conta de outrem, nem a favor de terceiros, mas em proveito de grupo determinado.

Notas explicativas

A cabeça do art. 24 diz com o seguro que é estipulado por pessoa distinta daquela que detém o interesse segurado, hipótese equivalente àquela do art. 767 do CC e, cremos, sobre isto dúvida não há, inclusive aplicando-se aqui, como luva, os exemplos que demos acima acerca dos seguros a favor de terceiros.

Já seu § 1º cuida de determinar as formas pelas quais se chega à figura do que nele se chama por beneficiário. Claro está, no entanto, que essa figura denominada beneficiário outra não é senão aquela que detém o interesse segurado.2

Mas o § 2º parece tratar de outra espécie de seguro, porque refere-se ao beneficiário a título oneroso. Não se consegue imaginar um beneficiário a título oneroso em decorrência de lei (§ 1º) – ao menos em seguros facultativos. Apenas se o concebe na hipótese de indicação por ato próprio do estipulante.

Embora não se trate de um clássico seguro a conta de outrem, sem dúvida é em favor de terceiro.

Com a leitura do § 2º vem, então, à mente um contrato de seguro sobre a vida que alguém celebra indicando, como beneficiário, o seu credor, causa da indicação e que se traduz numa indicação a título oneroso. Tendo este beneficiário já um direito, advém daí a obrigação de lhe ser entregue a documentação atinente ao contrato celebrado. Enfim, considera a lei, segundo entendemos e com o que concordamos, que é desse beneficiário o interesse segurado.

O art. 25 determina que seja declarado, quando conhecido, o interesse de terceiro – veja-se que a declaração é quanto à existência de interesse de terceiro, e não quanto a quem seja esse terceiro que, como já vimos, pode ser desconhecido no momento da contratação.

Mas a aparente cogência do caput – “deve ser declarado” – se esvai com o § 1º, porque basta que “em razão das circunstâncias ou dos termos do contrato”, a seguradora possa identificar a existência desse interesse alheio, ainda que não declarado.

Quanto ao § 2º, ele seria de fácil interpretação não fosse o trecho “ainda que decorrente de cumprimento de dever”. Mais uma vez vem à mente, pelo uso da expressão, seguros em que a indicação de beneficiário é feita a título oneroso – como é possível acontecer no conhecido seguro prestamista.

Possível, mas inusual. Quando a lei se refere a estipulante neste parágrafo, ela parece estar se referindo ao devedor, consumidor, que contrata seguro individual indicando a entidade credora como beneficiária a título oneroso. Ora, quando for assim, por certo cabe a ele a escolha do corretor e da seguradora, não obstante possa a entidade credora recusar a escolha de determinada seguradora que, notoriamente, enfrente desequilíbrios entre as garantias que presta e o capital e as reservas que constitui.

Mas o seguro prestamista é, presentemente, quase sempre celebrado por via de uma apólice coletiva em que o estipulante é a instituição credora.

Nesses casos, a apólice coletiva é contratada com a natureza de um seguro sobre a vida de outrem ou não. Noutras palavras, a instituição credora pode celebrar uma apólice coletiva em que estarão incluídos todos os seus devedores. Essa apólice é contratada com prêmios pagos pela instituição sem que os devedores saibam de sua existência, ou precisem saber – hipótese atualmente autorizada pelo art. 790 do CC; ou, a instituição credora pode estipular apólice coletiva em que o seu cliente, para obter crédito, se obriga a aderir à apólice estipulada pela entidade credora, ficando ele responsável pelo pagamento da parcela do prêmio global que lhe compete.3

Veja-se: numa hipótese, seguro sobre a vida de terceiro em que o estipulante é o credor do capital segurado em caso de sinistro; noutra hipótese, seguro contratado sobre a própria vida tendo como credora beneficiária – insubstituível, diga-se – a entidade estipulante.

Como se vê, por um ou por outro modo, é seguro que se celebra para garantir, caso haja sinistro coberto, o pagamento da dívida da pessoa devedora.

E, então, se assim é, não se vê por que o estipulante – no caso a entidade credora e aqui considerado, como estipulante, aquele de apólice coletiva – não possa indicar a seguradora, já que é a ela que a garantia é dada.

Veja-se que, quando se diz que a instituição credora, na qualidade de estipulante de apólice coletiva, pode indicar a seguradora, não se está dizendo que possa ela impor ao devedor a seguradora que tenha, em relação a outras do mercado, preços e condições mais desvantajosas. Quando isto se demonstrar, e aí sim, deve ser do devedor a escolha da seguradora. Até mesmo a instituição credora poderia ter, e deveria ter, à disposição do seu cliente e naqueles casos em que ele adere à apólice pagando prêmio (contribuição), mais de uma apólice coletiva com seguradoras diferentes para que o consumidor pudesse optar por uma ou por outra.

Pseudo-estipulante

Pula-se, agora, porque também merecedor de destacada atenção, para o art. 31, que pretende definir o estipulante de apólices coletivas. Em verdade, ao definir a figura do estipulante, acaba por definir o que é, de fato, um seguro coletivo: é aquele em que o estipulante contrata o seguro em proveito de um grupo com o qual tenha vínculo anterior a essa contratação e, ainda, que esse vínculo não decorra da intenção de estipular seguros – é isto o que a norma pretende ao afirmar que o vínculo há de ser “não securitário”, segundo entendemos.

As exigências para a formação de um seguro coletivo estão bem-postas, mas não bastam para evitar o nascimento de apólices que, mesmo preenchendo esses requisitos, de seguro coletivo não se trate.

Pense-se num banco, que tem, com seus correntistas, vínculo anterior e desvinculado de seguro. Ele tem os elementos exigidos pelo artigo em foco para tornar-se estipulante de um verdadeiro seguro coletivo e ele, então, celebra seguro coletivo com a seguradora que compõe o mesmo grupo econômico a que ele pertence. Mas, veja-se, o banco, na qualidade de estipulante, deve representar o grupo segurado, agindo em prol de seus interesses conforme o art. 32. Ora, parece indiscutível que o banco se orientará primeiro por seus próprios interesses – já que recebe gorda remuneração da seguradora para captação de segurados -, depois pelos da seguradora pertencente ao mesmo grupo econômico, e só a partir disso atentará para os interesses dos componentes do grupo segurado.

Então, se é assim, embora preenchidos os requisitos do artigo agora sob estudo, de seguro coletivo não se tratará, exatamente por faltar a ele a representação, de fato, do grupo de segurados e exigida pelo art. 32.

O mesmo se pode dizer das denominadas apólices coletivas estipuladas por administradoras de cartões de crédito que, em alguns casos, são remuneradas em percentuais do prêmio superiores àqueles necessários à garantia do risco. É possível dizer que representam os interesses do grupo segurado?

Em alguns casos, inclusive, o resultado financeiro da apólice (valores de prêmio menos valores de indenização) influi na remuneração desses chamados estipulantes. Diga-se, menos sinistro, maior o lucro da seguradora e maior a remuneração dos pseudo-estipulantes.

Por isto caberá ao intérprete atenta análise da casuística para se definir se se trata ou não de verdadeiro seguro coletivo, sempre levando em conta, para a análise deste artigo, a representação do grupo pelo estipulante tal como exigida pelo art. 32.

A repercussão dessa análise não é meramente acadêmica. Ela repercute, por exemplo, na vigência dos contratos firmados, na data em que os valores são atualizados monetariamente e na comunicação entre a seguradora e o segurado que, em não se tratando de seguro coletivo verdadeiro, é direta e não passa pelo chamado estipulante. E, é claro, as disposições aplicáveis a seguro em grupo, inclusive as desta lei, são diferentes das aplicáveis aos seguros de contratação individual.

Por fim, merece destaque ainda o art. 32, ao qual já nos referimos de passagem. Veja-se que ele aponta o estipulante como representante legal dos segurados inclusive no momento da formação do contrato-mestre.4 Parece-nos um importante equívoco. Sobre o seguro em grupo, destaca a doutrina:

“O contrato de seguro em grupo não é celebrado pelos componentes do grupo segurável, por aqueles que estão sujeitos aos riscos e pretendem a garantia. O contrato é celebrado entre a pessoa física ou jurídica que mantém vínculo determinado com os componentes do grupo segurável (o empregador, o sindicato, a associação), a qual será denominada estipulante, e a seguradora.

O estipulante celebrará com a seguradora um contrato matriz, que será chamado de contrato-mestre ou apólice-mestra, contendo o conteúdo do vínculo: as garantias do seguro, os riscos excluídos, a forma de adesão ou de inclusão dos componentes do grupo segurável, a taxa de prêmio, início de vigência do próprio contrato-mestre e das relações individuais constituídas, critérios determinadores da extinção do contrato-mestre e das relações individuais, enfim tudo o que for do interesse da comunidade de riscos.

Celebrado o contrato-mestre, a ele poderão aderir ou ser incluídos, conforme estabelecido em suas cláusulas, os componentes do grupo segurável, obtendo a garantia individual que desejam.”5

Ainda:

“O estipulante de seguro coletivo facultativo é representante dos componentes do grupo segurado.

Mas o estipulante também pratica, antes e durante a vigência do seguro coletivo, atos que lhe são próprios e não de representação. Como vimos há pouco, a celebração do contrato mestre se dá entre segurador e estipulante apenas, e este, nesse momento, age em nome próprio e não em representação do grupo segurado, ainda inexistente. (…)

Nesse sentido, Fabio Konder Comparato: “O estipulante é parte em sentido formal, disse eu, não é representante do grupo segurado – que não tem organicidade – nem tampouco de cada um dos segurados de per si, na contratação do seguro. Não age em nome dos segurados, e sim em seu próprio nome'”.6

Então, de se concluir que os componentes do grupo segurável apenas aderem a um contrato já pronto e com todas as suas cláusulas já estabelecidas. O estipulante não representa o grupo de segurados, até porque ainda inexistente, nem o grupo de seguráveis, mas age em nome próprio. Daí que os componentes do grupo segurável, ao aderirem ao contrato-mestre, estão por consequência aceitando tudo o quanto pactuado entre estipulante e seguradora.

Ora, se a lei afirma, porém, que o estipulante representa os segurados no ato de formação do contrato, o seguro coletivo sequer poderia compor esta Seção, porque de seguro em favor de terceiro não se trataria. Tratar-se-ia de um seguro celebrado em nome próprio – dos segurados -, só que por via de um representante. E nem seria compatível com a figura de representante as obrigações a ele impostas pelo § 2º do art. 31.

Ainda é cedo para saber se haverá repercussão prática no cotidiano do seguro coletivo decorrentemente da lei apontar o estipulante como representante dos segurados – ainda inexistentes – na formação do contrato. Admite-se que uma lei nova pode tratar diferentemente da lei antiga determinada questão, mas revela-se, a opção legislativa, uma afronta à lógica dessa espécie contratual considerando-se seus contornos operacionais, além da impropriedade de alocá-la em seção destinada a seguros em favor de terceiro.

______________________

1 Cabe esclarecer que também um seguro a conta própria, em que a indicação de beneficiário é feita a título gratuito, é um seguro em favor de terceiro, mas veja-se que, na Seção a que nos propusemos estudar, a referência é apenas quanto à indicação a título oneroso. Talvez isto se explique pelo fato de que o beneficiário a título oneroso tem, a partir do nascimento do contrato, um direito, embora condicional, enquanto o beneficiário a título gratuito não tem nenhum direito, a não ser com a consumação do sinistro.

2 Em muitas passagens da lei, utiliza-se da palavra beneficiário para referir-se a quem, de fato, é o segurado, detentor do interesse.

3 Prêmio global é aquele devido pelo estipulante à seguradora considerados todos os componentes do grupo segurado. Esses componentes, por sua vez, podem contribuir (seguro contributário) com o pagamento do prêmio global. Quando isto acontece, esta contribuição é a parcela que lhes compete pagar.

4 Contrato-mestre é aquele formado pelo ajuste de vontades entre estipulante e seguradora ao qual poderão aderir, num momento seguinte, pessoas aptas a integrar o grupo de segurados.

5 TZIRULNIK, Ernesto. CAVALCANTI, Flavio de Queiroz. PIMENTEL, Ayrton. O contrato de seguro de acordo com o Código Civil brasileiro. 3ª ed., São Paulo: RT, 2016, p. 297.

6 CAMPOY, Adilson José. Contrato de seguro de vida. São Paulo: RT, 2014, p. 168.

Publicado em Migalhas

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