Coluna Migalhas Securitárias | Aceitação tácita no contrato de resseguro: Quando o silêncio fala mais alto no art. 60, §1º, da lei 15.040/24
06/11/2025
Introdução
A entrada em vigor da lei 15.040/24, que institui o novo marco legal do seguro privado no Brasil, representa avanço normativo relevante, mas impõe riscos regulatórios concretos aos grandes players do mercado – especialmente resseguradoras internacionais – que operam com exigências de compliance, segurança jurídica e previsibilidade elevadas. Entre os dispositivos mais sensíveis do novo diploma está o art. 60, que disciplina o contrato de resseguro e introduz, de forma inédita, a possibilidade de formação contratual pelo silêncio da resseguradora no prazo de 20 dias após o recebimento da proposta.
A introdução do silêncio como modalidade de aceitação contratual, embora bem-intencionada, desconsidera as exigências regulatórias, internas e transfronteiriças, que regem a atuação das resseguradoras globais. Esses players não podem simplesmente presumir obrigações de cobertura com base na omissão em um prazo que pode ser considerado exíguo para o nível de análise técnica e documental que tais contratos exigem.
Complexidade técnica e o risco de vinculação não intencional
O contrato de resseguro, por sua natureza, envolve estruturas técnicas complexas, cláusulas altamente especializadas e, muitas vezes, múltiplas camadas de aprovação internas, tanto em nível nacional quanto internacional. A simplificação do vínculo jurídico por meio do decurso de prazo ignora esse contexto e aumenta exponencialmente o risco de formação contratual automática, sem manifestação inequívoca de vontade. Para grandes resseguradoras, isso significa a possibilidade de serem vinculadas a obrigações contratuais relevantes – e onerosas – sem que tenham completado seus processos internos mínimos de diligência e avaliação de risco.
O dispositivo também padece de imprecisão técnica relevante ao não definir com clareza o que configura uma “proposta” válida capaz de iniciar o prazo legal. Em contratos de resseguro facultativo, por exemplo, a negociação pode se estender por várias etapas sucessivas, com trocas de versões e alinhamentos progressivos. Sem uma definição normativa clara, abre-se margem para disputas quanto ao momento exato de início do prazo e, consequentemente, sobre a existência ou não de vínculo contratual. A situação é ainda mais crítica quando há divergência entre práticas locais e padrões internacionais.
A importância da regulamentação pela SUSEP e os riscos concorrenciais
O §2º do art. 60 agrava a incerteza ao autorizar que a SUSEP, em caso de “comprovada necessidade técnica”, amplie o prazo legal para aceitação pelo silêncio. Embora a flexibilização seja bem-vinda em tese, sua aplicação dependerá de critérios objetivos e transparentes, sob pena de gerar decisões discricionárias ou desiguais. Será necessário regulamentar, por exemplo, em quais hipóteses a ampliação será admitida – por ramo, por valor de exposição, por tipo de operação? Como será demonstrada essa “necessidade técnica”? Sem respostas claras, há risco de judicialização, insegurança regulatória e desigualdade concorrencial.
A consequência prática de um regime mal calibrado será inevitavelmente a retração da oferta de resseguro no mercado brasileiro. Resseguradoras com atuação global podem reduzir sua exposição local ou impor cláusulas mais rígidas e prêmios mais elevados, como compensação ao risco de passivos automáticos. Isso impacta diretamente a capacidade das seguradoras nacionais de operar com eficiência, encarecendo o seguro para o consumidor final e comprometendo a estabilidade sistêmica do setor.
É imperativo que a SUSEP edite regulamentação específica e tecnicamente fundamentada, com base em consulta pública e diálogo estruturado com os grandes players do setor, a fim de evitar que a aplicação literal do art. 60, §1º, gere efeitos desproporcionais ou crie passivos indesejados para resseguradoras e seguradoras de grande porte. A regulamentação deve abranger a definição formal da proposta, os meios válidos de comunicação, os efeitos da aceitação tácita sobre retroatividade da cobertura e os critérios para eventual ampliação de prazos, conforme previsto em lei.
Em paralelo, seria prudente fomentar a autorregulação por meio de entidades do mercado ressegurador, que possam propor modelos padronizados de proposta, protocolo de aceitação e cláusulas de salvaguarda, especialmente em operações transnacionais. Um ambiente jurídico confiável nasce não apenas da norma estatal, mas da articulação institucional entre os agentes econômicos e o regulador.
O art. 60, se adequadamente regulamentado, pode contribuir para tornar o mercado mais ágil. Mas, sem essa regulação, representa um vetor de insegurança jurídica que pode afastar o capital internacional e fragilizar a engenharia de proteção de riscos que sustenta a atividade seguradora em escala global.
Conclusão
A introdução da aceitação tácita no contrato de resseguro, nos moldes do art. 60, §1º da lei 15.040/24, é mais do que uma alteração procedimental: trata-se de um giro conceitual – leia-se: um giro de 180º, sobre o modo como se formam obrigações em um mercado intrinsecamente técnico, sensível e interdependente.
O silêncio, que em regra pede cautela, não pode ser erigido, por automatismo normativo, à condição de manifestação vinculante, sobretudo em um ambiente contratual assimétrico, no qual a diligência e a previsibilidade são pilares operacionais.
A ausência de balizas claras não apenas desorganiza a lógica da contratação internacional, como acende um sinal de alerta: a insegurança jurídica gerada pela má calibragem da norma pode comprometer justamente aquilo que se pretende proteger – a eficiência e a robustez do mercado ressegurador. Uma boa lei nasce da escuta dos que vivem sua aplicação; uma boa regulação, da maturidade institucional de reconhecer que, no resseguro, silêncio sem critério não é conveniência – é risco sistêmico.
Publicado em Migalhas