COLUNA SEGUROS CONTEMPORÂNEOS: INOVAÇÃO, RISCOS E SEGUROS – UMA BREVE VISÃO TÉCNICA E JURÍDICA

24/11/2022

Apesar da cultura de gestão de riscos não ser disseminada no Brasil como em outros países desenvolvidos, é patente o crescimento do mercado segurador brasileiro ao longo dos últimos anos. Em que pese o aumento do volume de prêmios cobrados e de indenizações pagas, quando colocamos o mercado local em perspectiva com outros já desenvolvidos averiguamos que nossos avanços se limitam, em certa medida, apenas aos aspectos quantitativos, e que, ainda, falta-nos um caminho importante a percorrer em direção à qualidade e amplitude de coberturas. Há inúmeras razões por trás de tal constatação, mas um dos elementos de maior relevo para o atual estado de coisas em que se encontra o mercado segurador brasileiro é a falta de um conhecimento mais profundo de aspectos técnicos, jurídicos e regulatórios, em particular dos que recaem sobre as seguradoras, por parte da sociedade como um todo.

Inúmeras iniciativas têm sido adotadas pelo poder público, através da intervenção do Estado no domínio econômico, com o fim de mudar esta dinâmica e fomentar o desenvolvimento e inovação e, sobretudo, melhorar a forma como as seguradoras e o contrato de seguro são percebidos pelos segurados.

As intenções vão da criação de um ambiente regulatório menos gravoso para projetos inovadores, até a garantia de mais liberdade na redação dos contratos com a diminuição do dirigismo contratual.

No entanto, implementar mudanças não é algo trivial, a atividade seguradora gravita ao redor de um sistema complexo e regulado nos mais variados aspectos a fim de garantir a higidez do sistema, de forma que, quando um determinado segurado necessite receber sua indenização não haja problemas. É natural que seja desta forma, principalmente quando pensamos que as seguradoras captam dinheiro da poupança pública.

Em exceção ao oneroso arcabouço regulatório imposto às seguradoras que tem operado no mercado brasileiro, os órgãos reguladores, à luz do desenvolvimento tecnológico, a fim de fomentar a inovação e o desenvolvimento, implementaram o sandbox regulatório.

A palavra em inglês sandbox, em tradução literal para o português significa “caixa de areia”, remete a um ambiente seguro onde as crianças têm liberdade para brincar sem que haja maiores riscos, tendo em vista o amortecimento natural proporcionado pelo local, em caso de tombos ou pancadas mais bruscos.

O sentido essencial por trás do sandbox regulatório está no fato de que as boas ideias inovadoras deveriam contar com incentivos, sem tantas obrigações de natureza regulatória, como àquelas impostas aos jogadores já há muito estabelecidos no mercado. Além do fomento à inovação há uma redução das barreiras à entrada de novos agentes. Assim, novas ideias podem ser testadas e escaladas — disseminadas em larga quantidade — tão logo tenham sua utilidade e viabilidade econômicas comprovadas.

É assim que, num ambiente cada vez mais desafiador, espera-se desenvolver o mercado segurador brasileiro, quantitativa e qualitativamente, através da convergência da centenária prática securitária com as tecnologias mais modernas.

Neste cenário, impulsionados pelo ambiente regulatório experimental e mirando o crescimento do mercado é que o sandbox estabelecido pelo Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) através da Resolução 381/20, versa em seu artigo 1.º do capítulo I — Âmbito e finalidade — Estabelecer as condições necessárias para a autorização e o funcionamento, por tempo determinado, de sociedades seguradoras participantes exclusivamente de ambiente regulatório experimental (Sandbox Regulatório) que desenvolvam projeto inovador mediante o cumprimento de critérios e limites previamente estabelecidos.

A iniciativa do órgão regulador do mercado de seguros chegou em boa hora e antecedeu a Lei Complementar 182/21, que versa sobre o marco legal das startups que fixa o ambiente regulatório do empreendedorismo inovador.

Tanto a Resolução 381/20, quanto a Lei Complementar 182/21, tem como premissa maior a necessidade de caráter inovador dos empreendimentos.

Neste sentido, dispõe o artigo 1º, II, da lei complementar 182/21:

Art. 1.º Esta Lei Complementar institui o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador. (grifamos)

Parágrafo único. Esta Lei Complementar:

II – apresenta medidas de fomento ao ambiente de negócios e ao aumento da oferta de capital para investimento em empreendedorismo inovador; (grifamos)

Segue ainda o artigo 3.º:

Art. 3.º Esta Lei Complementar é pautada pelos seguintes princípios e diretrizes:

I – reconhecimento do empreendedorismo inovador como vetor de desenvolvimento econômico, social e ambiental;
II – incentivo à constituição de ambientes favoráveis ao empreendedorismo inovador, com valorização da segurança jurídica e da liberdade contratual como premissas para a promoção do investimento e do aumento da oferta de capital direcionado a iniciativas inovadoras;

Segue ainda o artigo 3.º:

Art. 3.º Esta Lei Complementar é pautada pelos seguintes princípios e diretrizes:

I – reconhecimento do empreendedorismo inovador como vetor de desenvolvimento econômico, social e ambiental;
II – incentivo à constituição de ambientes favoráveis ao empreendedorismo inovador, com valorização da segurança jurídica e da liberdade contratual como premissas para a promoção do investimento e do aumento da oferta de capital direcionado a iniciativas inovadoras;

Resta muito clara a intenção do legislador de criar um sistema em que a inovação possa florescer de maneira favorável e proporcionar desenvolvimento econômico e por consequência social.

Cabe, neste ponto, uma reflexão acerca do que poderia caracterizar “inovação” dentro do mercado de seguros, em particular, no que diz respeito a atividade seguradora baseada nas tecnologias presentes hoje; ou ainda: como a inovação pode comunicar-se e interagir com a tradicional prática securitária?

Aqui, por questões de ordem jurídica e técnica, nos parece interessante avaliar o aspecto da inovação sob o prisma dos elementos do contrato de seguros contidos na legislação em vigor, notadamente o artigo 757 do Código Civil, que versa:

Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.

Parágrafo único. Somente pode ser parte, no contrato de seguro, como segurador, entidade para tal fim legalmente autorizada.

Como destaca Tzirulnik [1], há cinco elementos a serem analisados no contrato de seguro, à saber: 1) garantia; 2) interesse; 3) risco; 4) prêmio; e 5) empresarialidade.

Quero chamar a atenção aos elementos 1 e 3, em especial.

O elemento 1 Garantia — trazido pelo artigo 757 é, como salienta Tzirulnik, o objeto nuclear do contrato e evidencia a característica da comutatividade dos contratos de seguro ao retirar o elemento indenização como seu fim. Assim, a comutação, como salienta o referido autor, se dá entre a prestação por parte do segurado (prêmio) e a contraprestação pela seguradora (garantia), ambas estabelecidas de forma clara desde o início da vigência do contrato.

A garantia como parte devida pela seguradora força esta, necessariamente, a manter provisões e patrimônio suficientes para fazer frente aos eventuais danos cobertos sofridos pelos segurados, desde o início de vigência dos contratos. Para tanto, a seguradora deve dispor de equipe multidisciplinar composta de atuários, estatísticos e financistas aptos a determinar, com base em diversos estudos e modelos, qual a sinistralidade projetada para determinadas carteiras, de maneira que possa ser calculado o prêmio puro para o risco, bem como a necessidade de provisões necessárias, principalmente IBNR — sigla em inglês para incurred but not reported —, de forma que qualquer segurado tenha satisfeita sua expectativa em relação ao contrato no caso de sinistro coberto. Deste modo, para o elemento 1, a inovação poderia se dar no refinamento de modelos baseados em diversas coleções de registros (dados) disponíveis nas mais variadas fontes. Tal prática, poderia ajudar a determinar/capturar em tempos mais curtos alterações em tendências de comportamentos de determinadas carteiras, de forma a proporcionar ajustes mais adequados e rápidos melhorando a sinistralidade do mercado.

O elemento 3 — Risco, talvez seja o aspecto mais característico dos contratos de seguros e não deve ser nunca confundido com incerteza. Uma das melhores análises e distinções entre risco e incerteza foi feita por Knight em 1921, um economista americano da Escola de Chicago, cético quanto às possibilidades de vaticinar algo apenas com base em observações passadas, refinou a distinção entre risco e incerteza, trazendo-a da maneira como mais se utiliza hoje no mundo acadêmico e no mercado financeiro. Knight asseverava:

“[…] A Incerteza precisa ser considerada com um sentido radicalmente distinto da noção comumente aceita de Risco, da qual nunca foi adequadamente separada… O aspecto essencial está no fato de ‘Risco’ significar, em alguns casos, uma variável passível de ser medida, enquanto em outros o termo não aceita esse atributo; além disso, há enormes e cruciais diferenças nas consequências desses fenômenos, dependendo de qual dos dois esteja realmente presente e operante… Está claro que uma incerteza mensurável, ou o risco propriamente dito, na acepção que utilizaremos, é tão diferente de uma incerteza não-mensurável, que não se trata, de forma alguma, de uma incerteza” [2].

A fim de elucidar sua proposição, Knight apresentou o seguinte exemplo: imagine uma situação em que dois sujeitos retiram bolas pretas e vermelhas de uma urna e que a primeira pessoa não conhece o número exato de bolas em cada cor, enquanto a segunda sabe que, para cada três vermelhas, há uma preta, e, assim, pode estimar que há 75% de chance de retirar uma vermelha. Para Knight, a primeira pessoa está diante da ignorância e da incerteza e a segunda está diante do risco.

A maior contribuição de Knight sobre o assunto foi destacar a necessidade de diferenciar risco de incerteza, sendo que o primeiro é passível de ser quantificado e avaliado, ao passo que a última não. Essa distinção é da maior relevância para a atividade econômica, para o mundo jurídico e para o Estado na administração pública, tendo em vista que, a partir do momento em que se torna possível estimar a possibilidade de ocorrência de determinado fato, passa a ser possível também a implementação de políticas de mitigação de riscos e uma melhor alocação de recursos.

O processo de análise de risco — e sua distinção da incerteza, não segurável — na atividade seguradora é chamado de “subscrição”, este caracteriza-se pelo trabalho de determinar, com base em análises atuariais e estatísticas, como situações consideradas cobertas dentro dos contratos de seguros se comportam quanto a possibilidade de ocorrência um sinistro. Com base neste trabalho, o segurador determina, qual a característica que um determinado portfólio de itens segurados deve ter de forma a garantir a homogeneidade deste. Uma vez definida as características que determinado grupo de itens segurados deve conter, o processo de subscrição passa a avaliar individual e subjetivamente os aspectos de itens a serem inseridos no portfólio, aqui começa um processo de busca por diminuição de assimetria de informação entre proponente segurado e seguradora, que é a essência do processo de subscrição.

Via de regra, quanto maior o desconhecimento do subscritor sobre determinado item a ser segurado — incluído em um portfólio — maior tende a ser o prêmio para este item. É através do processo de subscrição que a seguradora define sobre aceitação de um risco — ou não.

A diminuição da assimetria de informação entre seguradora e segurado no momento de formação do contrato trás elevados custos. Quanto mais informações a seguradora tentar obter sobre determinado proponente, maior será seu custo.

A análise de risco no processo de subscrição pode se beneficiar muito das novas tecnologias existentes, especialmente àquelas relacionadas à ciência de dados. Historicamente, o mercado segurador tem colecionado um número de registros significativos relacionados a sinistros. Tais registros poderiam ser cruzados com outros dados abertos ao mercado, de maneira a desenvolver produtos que se adequem melhor as novas situações de risco, bem como oferecer melhores serviços e diminuir o custo da operação de seguros. Alguns modelos de negócios já têm utilizado a grande quantidade de dados disponíveis, de forma aberta, para refinar modelos de subscrição e aceitação de riscos. Há, contudo, um grande campo a ser explorado nesta seara.

Ao perpassar os elementos “garantia” e “risco”, existentes nos contratos de seguro, bem como estes podem funcionar calcados nas novas tecnologias, observamos que são elementos nucleares à operação securitária; sua ausência, bem como dos trabalhos relacionados a estes — subscrição e gestão de reservas técnicas — pode ensejar problemas na continuidade e higidez na operação de uma seguradora, comprometendo a solvência e o adimplemento da obrigação para com os segurados. É importante colocar estes ângulos em destaque, porquanto observa-se hoje, o aumento de modelos de negócios que conjugam tecnologia e a prática securitária que, à primeira vista, colocam ênfase na distribuição e facilidade de contratação ignorando os elementos “garantia” e “risco” em segundo plano.

Os modelos de negócio mais comumente trazidos pelas insurtechs realçam o aspecto da distribuição às pessoas naturais, através de aplicações on-line em que, o proponente, de maneira simples e objetiva, pode contratar apólices customizadas às suas necessidades. Há um grande foco na experiência de contratação, o que outrora era — em alguns casos ainda é — um processo de grande escrutínio acerca do perfil do proponente, passa a ocorrer de maneira fluida e rápida. Esta facilitação e foco na experiência de contratação — parece-nos — tem como referência e inspiração os negócios de comércio eletrônico. Aqui, não se pode olvidar o seguinte: as relações jurídicas estabelecidas nos clássicos contratos de comércio eletrônico são, em sua maioria, de execução imediata, ao passo que, os contratos de seguros são de execução continuada. Nestes, com o aceite da seguradora, nasce uma relação jurídica que, na maioria dos casos, dura no mínimo um ano, caracterizada pela garantia do interesse segurado — elemento 1 acima —, já naqueles com a entrega do bem, que hoje ocorre muitas vezes no mesmo dia, o negócio se aperfeiçoa e a obrigação, em tese, se extingue.

Compreender essas diferenças é crucial, e pode ser fator determinante entre a ruína e a perenidade destes novos negócios que tem surgido. Ignorar os elementos “garantia” e “risco” em qualquer inovação no mercado de seguros, em que pesem as facilidades criadas pelo sandbox regulatório, pode sacrificar qualquer modelo de negócio que esteja tão somente pautado na distribuição pelo segurador.

Isso posto, nos parecem muito positivas as iniciativas do poder público de fomento à atividade securitária e sua inovação, notadamente no ambiente do sandbox regulatório, mas aventurar-se nos mares no mercado segurador ignorando elementos centenários na atividade, ainda que num contexto de elevada tecnologia, pode não resultar em sucesso, afinal, como sempre tenho dito: “Nada resiste a um índice combinado de 100% por muito tempo”.

Publicado por ConJur

[1] TZIRULNIK, E.; CAVALCANTI, F.; PIMENTEL, A. O contrato de seguro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

[2] KNIGHT, F. H. Risk, Uncertainty and Profit. New York: Hart, Schaffner, and Marx, 1921. p. 283.

 

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