Coluna Seguros Contemporâneos: O Papel do Juiz no Seguro Garantia Judicial

22/02/2024

Em 2020, pela boa iniciativa de Solange Paiva Vieira, a Superintendência de Seguros Privados (Susep) abriu processo de consulta pública para atualizar o seguro-garantia, movimento que resultou na Circular Susep nº 662/2022, editada na gestão seguinte de Alexandre Camillo.

A norma procurou dar a essa modalidade securitária uma disciplina mais adaptada às novas figuras praticadas no mercado, unificando os setores público e privado, com ênfase nas obrigações garantidas e riscos excluídos, um detalhamento maior na configuração do sinistro, seu momento de expectativa, o regime de comunicação dos eventos relevantes e a alteração do risco vinculado ao contrato principal.

O enigma do artigo 2º
No entanto, existe uma disposição que não ficou clara até hoje. Seu artigo 2º apresenta um rol de definições básicas sobre os elementos do seguro-garantia, contendo dois parágrafos. O primeiro fala que a obrigação garantida pode se limitar a fases, etapas ou entregas parciais do objeto principal. Já o segundo parágrafo dispõe que “Nos casos em que o objeto principal for um processo judicial, o juízo poderá agir em nome do segurado na apólice, de acordo e nos limites da legislação específica do objeto principal”.

Eis o ponto. Ao que parece, a circular está se referindo ao seguro garantia judicial. Duas interrogações se abrem. Primeiro, o que significa o juízo agir em “nome” do segurado? Segundo, qual é a finalidade dessa atuação? Não há resposta no texto normativo.

O Manual de Seguro Garantia, material didático recentemente estruturado pela Susep, pode dar alguma pista. Existe uma passagem nele dizendo o seguinte: “Além dessas partes envolvidas, o juízo que julgará esse processo poderá participar da apólice agindo em nome do segurado, de acordo e nos limites da legislação específica do referido processo” [1].

A explicação ficou igualmente enigmática: o juízo poderá participar da apólice para agir em “nome” do segurado. O que a entidade reguladora está querendo dizer? Falar em nome de outrem supõe defesa do interesse alheio. Nesse caso, seria o órgão judicial um mandatário, representante ou gestor de negócios do segurado?

Talvez uma visita à exposição de motivos da Circular Susep nº 662/2022 possa abrir algum caminho à vista das anotações realizadas no processo administrativo [2]. Ali, em determinado momento da consulta pública, apareceu uma proposta para definir o “segurado” dessa forma: “credor das obrigações assumidas pelo tomador na relação principal ou órgão do Poder Judiciário nos casos de processo judicial”.

Sem vantagem
Observe-se: a proposição era no sentido de colocar o aparelho judiciário como segurado nas apólices de garantia. De fato, existe um fenômeno curioso no mercado. As companhias costumam emitir o documento nominando o tribunal (TJ/TRF), a vara e sua secretaria judiciária (ou cartório) no espaço do frontispício reservado ao “segurado”. Talvez o impulso de alguém que pensou na função de “garantia do juízo” atribuída aos depósitos e atos de penhora.

Entretanto, garantir o juízo para fins processuais, providência exigida pelo sistema para ajudar a suspender os atos executivos enquanto o devedor se defende, não é a mesma coisa que garantir os interesses econômicos de alguém relacionados com o risco de descumprimento da ordem judicial. Aqui, a operação securitária tem uma racionalidade diferente. O glossário das condições gerais define o segurado como potencial credor da obrigação pecuniária “sub judice”. Não é o Estado, certamente.

Em termos práticos, essa colocação também não traz nenhuma vantagem para o andamento do processo. Pelo contrário. Pode gerar riscos desnecessários, como o juiz querer remanejar a garantia para outros litígios da mesma vara, envolvendo o mesmo devedor, a pretexto de haver saldo na importância segurada.

Sugestões
No final das contas, a Susep não aceitou a sugestão de qualificar o juízo como segurado, ficando sua definição restrita ao credor das obrigações assumidas pelo tomador no objeto principal [3]. Mas a ideia não foi descartada por inteiro. A superintendência abriu um parágrafo na minuta da circular para afirmar que “Nos casos em que o objeto principal for um processo judicial, o juízo poderá agir em nome do segurado na apólice, de acordo e nos limites da legislação específica do objeto principal”.

As entidades ouvidas acompanharam essa proposição, com exceção do Grupo de Estudos Tributários Aplicados (Cetap), que sugeriu suprimir o enunciado dando a seguinte justificativa: “Em relação ao seguro, compete ao juiz ouvir as partes e se posicionar a favor ou contrariamente aos interesses do segurado, conforme as circunstâncias. Não nos parece razoável atribuir ao juízo poderes para, por conta própria, agir em nome do segurado. A prevalecer essa orientação, podemos nos deparar com a situação de o juízo determinar, de ofício, por exemplo, a execução da garantia.

Quarta figura na apólice
A crítica não foi acolhida. A Susep manteve o dispositivo afirmando que pretendia apenas deixar clara a possibilidade de atuação do órgão, segundo as regras processuais, como “quarta figura na apólice” em função das características e funcionamento do processo judicial.

Agora as coisas começam a ficar mais claras. A menção feita à “quarta figura” significa uma posição intermediária de quem não é segurado, mas pode falar em seu “nome”. Finalmente, encontramos a fonte do § 2º do art. 2º da Circular nº 662/2022.

Não parece correta essa colocação, com todo respeito. Vejamos o que se passa nos processos de execução fiscal. Quando a obrigação de pagar quantia certa se consolida pela rejeição dos embargos do executado, ou por sua não apresentação, o terceiro garantidor (se houver) será intimado para remir o bem (se a garantia for real) ou pagar o valor da dívida indicada na Certidão de Dívida Ativa (se a garantia for fidejussória), sob pena de contra ele prosseguir a execução nos próprios autos (Lei nº 6.830/80, art. 19, inc. I e II).[4]

Esse gatilho do redirecionamento da execução contra os fiadores profissionais [5] conta hoje com recente novidade. A Lei nº 14.689/2023 acabou de estabelecer que as garantias apresentadas somente serão liquidadas, no todo ou em parte, após o trânsito em julgado da decisão de mérito em desfavor do contribuinte, vedada a sua liquidação antecipada (Lei nº 6.830/80, art. 9º, § 7º)[6].

Vale dizer, os bancos e seguradoras que emitiram fiança e seguro, respectivamente, só estão obrigados a depositar o valor da garantia nos autos após o trânsito em julgado da decisão que reconheceu o crédito da fazenda pública [7].

Confluência de interesses
De todo modo, independentemente do momento de liquidação, existe uma confluência de dois interesses seguráveis no seguro judicial: o interesse do devedor de não ser constrangido pelas medidas agressivas do processo de execução, e o interesse do credor de receber o dinheiro [8].

Nesse contexto, o órgão do Poder Judiciário não faz jus à prestação inadimplida e tampouco é destinatário do produto dessa garantia. Enfim, não é titular do interesse segurável posto em risco.

Além disso, o agente público também não “representa” o segurado para qualquer finalidade, como se fosse uma espécie de “estipulante” de seguros coletivos. Como sujeito imparcial, o juiz não fala em nome das partes na interlocução com o público, mas sim como órgão do Estado. Não se comunica em nome do autor ou do réu quando convoca terceiros a participar do processo, quando solicita informações e documentos necessários à instrução da causa.

O magistrado não fala em nome do exequente quando intima o devedor a indicar bens penhoráveis, sua localização ou a prova de sua propriedade, quando determina a entrega do bem depositado em poder do executado, quando ordena à instituição financeira que torne indisponíveis os ativos financeiros do devedor. No âmbito das convenções processuais, o juiz não se apresenta em nome do autor ou do réu para exigir o cumprimento do negócio jurídico processual celebrado nos autos [9].

O mesmo ocorre no gerenciamento das garantias prestadas por terceiros. O juiz exerce funções de gestão do procedimento voltada a imprimir celeridade e eficiência na prestação jurisdicional, o que se faz em cooperação com as partes, e não em nome das partes (CPC, artigo 6º e 8º) [10].

O acesso à Justiça, que vai do ajuizamento da ação à satisfação do direito (CPC, artigo 4º),[11] impulsiona a atuação do Estado-juiz pelo interesse público que move o sistema de Justiça, como assinalou o Supremo Tribunal Federal no precedente das medidas executivas atípicas [12].

Nessa perspectiva, não faz sentido dizer que o juízo agirá em “nome” do segurado. A Circular SUSEP nº 662/2022 poderia apenas informar o seguinte: nos seguros emitidos para garantir o cumprimento de decisões judiciais e arbitrais, o juízo poderá intimar a companhia seguradora para fins de execução da garantia, nos termos da legislação processual.

Fica aqui uma sugestão para futuras regulações.


[1] https://www.gov.br/susep/pt-br/central-de-conteudos/noticias/2023/dezembro/susep-lanca-manual-tecnico-de-seguro-garantia.

[2] SUSEP – Processo nº 15414.603660/2020-12.

[3] Circular SUSEP nº 662/2022 – “segurado: credor das obrigações assumidas pelo tomador no objeto principal” (Art. 2º, IV).

[4] Cf. art. 10 da Portaria Normativa nº 41/2022 da Procuradoria-Geral Federal.

[5] MELO, Gustavo de Medeiros. “Redirecionamento da execução civil contra os fiadores profissionais: uma leitura sistemática do § 5º do art. 513 do CPC”. Revista de Processo. Vol. 334, 2022, p. 133.

[6] Para um panorama geral anterior à Lei nº 14.689/2023: JUNQUEIRA, Thiago. Críticas à liquidação antecipada do seguro garantia judicial antes do trânsito em julgado dos embargos à execução fiscal. AGIRE – Direito Privado em Ação, nº 93, 2023.

[7] O STJ está dando por encerrada a controvérsia e aplicando de imediato a nova lei para os processos pendentes: RESP nº 2.093.036-SP, Ministra Regina Helena Costa, j. 02.02.2024.

[8] MELO, Gustavo de Medeiros. Seguro garantia judicial – aspectos processuais e materiais de uma figura ainda desconhecida. Revista de Processo. Vol. 201, 2011, p. 105; POLETTO, Gladimir Adriani. O Seguro-Garantia: eficiência e proteção para o desenvolvimento. São Paulo: Roncarati, 2021, p. 152.

[9] Há um rico debate na doutrina sobre a posição do juiz na convenção processual: CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais: Teoria geral dos negócios jurídicos processuais. 3ª ed., Salvador: JusPodivm, 2020, p. 269.

[10] NOGUEIRA, Pedro Henrique. Gestão da execução por meio de negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. Revista de Processo. Vol. 286, 2018, p. 325; ANDRADE, Érico. Gestão processual flexível, colaborativa e proporcional: cenários para implementação das novas tendências no CPC/2015. Revista da Faculdade de Direito UFMG. Nº 76, 2020, p. 183; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Case Management no Brasil. Revista ANNEP de Direito Processual. Vol. 1, nº 2, 2020, p. 13.

[11] MELO, Gustavo de Medeiros. A tutela adequada na Reforma Constitucional de 2004. Revista de Processo. Vol. 124, 2005, p. 76.

[12] STF: “Em síntese, a efetiva solução do conflito, com a respectiva satisfação da pretensão do credor, é inerente à ideia de acesso à justiça e aproveita não apenas o vencedor de uma ação específica, mas todo o sistema jurisdicional” (ADI nº 5.941-DF, Min. Luiz Fux, j. 09/02/2023).

Publicado em Conjur

Compartilhe nas suas redes sociais

LinkedInFacebook