Lançamento – Coluna Migalhas Securitárias | A atualização da responsabilidade civil na Reforma do Código Civil e os impactos nos seguros de responsabilidade civil

15/08/2025

A lei 15.040, de 9 de dezembro de 2024, “Lei de Seguros” como passou a ser chamada, inovou no ordenamento jurídico nacional ao introduzir 10 artigos específicos sobre os seguros de responsabilidade civil, antes referidos por apenas dois artigos no Código Civil de 2002. A importância deste segmento de seguros no Brasil se fez notar nos últimos vinte anos, diante da multiplicação dos tipos comercializados pelas seguradoras. Antes reservados aos riscos industriais e comerciais (existência da empresa criando riscos para a circunvizinhança; distribuição de produtos; prestação de serviços em locais de terceiros; shoppings centers; obras civis e instalações-montagens; condomínios), mais recentemente a expansão se voltou para os seguros de riscos profissionais (área da saúde; advogados; engenharia de projetos; corretores), também para a responsabilidade civil decorrente da gestão de empresas e fundos (diretores e administradores – D&O), riscos cibernéticos e riscos ambientais. A cobertura para a responsabilidade civil decorrente da circulação de veículos automotores terrestres tem sido contratada facultativamente no Brasil, através de ramo próprio, usualmente atrelada à apólice do Seguro Automóvel, sendo que este seguro passou a ter maior relevância em função da recente extinção do seguro obrigatório de danos pessoais pela circulação de veículos (DPVAT), sem um modelo substitutivo até o momento. Os brasileiros, precisamente os empresários e os profissionais autônomos, perceberam que a sociedade contemporânea é mais suscetível a reclamar os seus direitos, toda vez que sofre danos pela ação ou omissão deles. Aquela ideia de “dano injusto”, propagada ainda nos anos 1980 pelo ilustre Orlando Gomes, conforme o giro conceitual proposto pelo doutrinador1, a partir do vetusto ato ilícito, tem prosperado na atualidade. A monetização dos riscos e dos prejuízos através dos contratos de seguros de responsabilidade civil tem alcançado patamar significativo. O fenômeno do incremento da comercialização dos referidos seguros segue uma ordem natural, motivada pelo interesse que os segurados têm de se protegerem contra a obrigação de indenizar terceiros em geral, incluindo clientes e pacientes nesta categoria amplificada, uma vez sobrevindo danos durante o desempenho de suas atividades. Eles têm não só adquirido os seus próprios seguros, como também, acreditando na natureza garantidora do seguro, passaram a exigir de terceiros contratados por eles a comprovação de que possuem apólices que possam beneficiá-los em caso de falhas na prestação dos serviços, provocando-lhes danos. É o fenômeno da horizontalização.2

Os seguros de responsabilidade civil no Brasil começaram a ser operacionalizados a partir de 1960 quando o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), no regime de monopólio estatal do resseguro, criou a Divisão de Responsabilidade Civil Geral. A intervenção do referido ressegurador foi fundamental para o desenvolvimento do segmento, sendo que ele oferecia, além da capacidade de resseguro para as seguradoras, também as condições contratuais e tarifárias dos diferentes tipos dos seguros. Esse modelo persistiu pelo longo período do monopólio (1939-2007), quando a LC 126, de 15/1/2007, desmonopolizou o resseguro no país. A Superintendência de Seguros Privados (Susep), em função da abertura, passou a padronizar os textos de coberturas, de 2007 até o final de 2020, quando através do movimento modernizador iniciado pela própria Autarquia, houve a liberalização para as seguradoras estabelecerem as respectivas bases de coberturas, cujo procedimento sempre foi praticado pelos mercados de seguros modernos e maduros e que finalmente chegou ao Brasil. Em razão desse cenário, ou seja, da forte presença condutora do Estado no estabelecimento das bases contratuais dos seguros de responsabilidade civil, com a acomodação das seguradoras privadas, os modelos praticados não se encontram atualizados, sequer nos moldes exigidos pelo Código Civil de 2002, com raríssimas exceções. Podem revelar, inclusive, determinados descompassos com o regramento previsto no Código de Defesa do Consumidor, apesar de ter sido promulgado pela lei 8.078, de 11/9/1990.

Feita essa digressão no tempo e de modo a situar o estado da arte das condições contratuais das diferentes apólices de seguros de responsabilidade civil no mercado brasileiro, convém destacar o novo enfoque dado pela lei 15.040/2024, a qual impõe atualizações pontuais em todos os modelos atualmente comercializados no país. Não bastasse essa inovação legislativa, o mercado de seguros terá de enfrentar, ainda, provavelmente em curto espaço de tempo, a reforma do Código Civil, que trará com ela uma verdadeira revolução no âmbito do instituto jurídico da responsabilidade civil. O Comitê de Juristas encarregado das propostas, para essa parcela do trabalho de revisão, deixou marcado no relatório final de apresentação ao Senado o escopo da atualização proposta:

“A responsabilidade civil de 2023 se encontra em um momento muito distante do estado da arte dos anos setenta do século XX, época em que foi forjado o Código Civil. Não se trata apenas de um hiato de 50 anos, porém de meio século que transformou a vida humana e os seus costumes de modo mais significativo que os últimos 2.000 anos de civilização”. (…)

“Acresça-se a isso que, diferentemente da fertilidade legislativa atuante sobre vários setores do Direito Civil nos últimos 20 anos, na temática da responsabilidade civil não houve sequer uma inovação legal. Em resumo, verifica-se um desajuste temporal de mais de 100 anos”.

A modernização proposta é das mais amplas e coloca o ordenamento em sintonia com os riscos, os anseios e os interesses da sociedade pós-moderna. Para as mentes abertas e oxigenadas, sem apego a dogmas insepultos, o resultado do trabalho é não só estimulante, como alvissareiro em face do abandono dos velhos conceitos, carcomidos pelo tempo, deixando-os presos no passado. A atualização traz figuras já conhecidas da doutrina mais refinada e especializada, assim como da ainda claudicante jurisprudência dos tribunais. Figuras como “danos ao projeto de vida”, “sanção pecuniária pedagógica”, “dano social”, “danos atuais e futuros”, “perda de uma chance”, “danos extrapatrimoniais indiretos ou reflexos”, “ofensa à integridade física, psíquica ou psicológica” – “dano existencial”, “dano ao meio ambiente”, “responsabilidade civil preventiva”, “fortuito interno”, além da reafirmação do “princípio da indenização integral”, acolhidos e positivados, espelham a grandiosidade do instituto da responsabilidade civil, guindando-o ao devido lugar de destaque na reforma do Código Civil. Evidencia-se, nas propostas, a hipervalorização dos danos extrapatrimoniais, que na verdade compreendem grande parte da vasta nomenclatura atribuída aos diferentes tipos de danos, representando parcelas contributivas para o quantum indenizatório e de modo a torná-lo o mais justo possível e com vistas na indenização integral das vítimas. O olhar dos juristas revisores também foi criterioso para identificar mecanismos mínimos para a valoração dos danos. Do patrimonialismo que se encontra presente no Código Civil de 2002, a reforma tem o condão de romper com esse pensamento oitocentista, recolocando o homem no centro do ordenamento e valorizando-o para além do “ser unicamente laboral”. A indenização integral da vítima se espelhará nesse novo estágio valorativo, “do ter para o ser”, sem o apego e a interferência de dogmas puramente civilistas, assim como a questão do enriquecimento injusto em face da vítima que se tornou completamente inválida, modificando drasticamente o seu projeto de vida. Os contratos de seguros devem acompanhar a evolução.

As condições contratuais dos seguros de responsabilidade civil deverão sofrer, forçosamente, os impactos decorrentes das modificações do Código Civil, mesmo porque elas importam em maior grau de exposição para os segurados, requerendo a consequente garantia da cobertura das apólices. Em face do princípio da utilidade subsumido no contrato de seguro, os de responsabilidade civil deverão acolher essa exposição complementar que será determinada, de forma cogente, no Código Civil.

As definições encontradas nas apólices brasileiras de seguros de responsabilidade civil, especialmente para a garantia de lesões corporais causadas a terceiros3, se mostram extremamente reduzidas e sequer acobertam de forma ampla, como deveriam garantir, na vigência do atual ordenamento. São encontradas limitações pontuais, assim como a exclusão de danos morais e estéticos, sendo que a cobertura para as respectivas parcelas é oferecida de forma adicional, com sublimitação da importância segurada; o dano estético, por sua vez, nem sempre é ofertado mesmo sob a condição de cobertura acessória. O dano moral fica circunscrito ao dano corporal, quando diretamente decorrente deste e exclusivamente sofrido pela pessoa diretamente lesada. A reforma do Código Civil não só revigora os danos extrapatrimoniais, como também deixa clara a abrangência das consequências reflexas para além da pessoa da vítima. Ao distinguir o dano atual do futuro, o ordenamento jurídico abre para os contratos de seguros de responsabilidade civil um novo parâmetro determinante do pagamento da indenização. Até o momento atual, a forma majoritária recai na liquidação realizada de uma única vez. A tendência, a partir da reforma, será a constituição de capital de renda, de modo a acompanhar a evolução da lesão da vítima. Os danos futuros estão relacionados, basicamente, com a majoração das sequelas deixadas pela lesão inicial, assim como a necessidade de uma nova cirurgia ou tratamento, troca de próteses e outras situações correlatas. Não há como negar que essa necessidade já existe na atualidade, mas o ordenamento vigente se mostra menos criterioso e detalhista, fato que motiva as seguradoras a adotar o procedimento menos trabalhoso. Essas e outras modificações inovadoras, a serem introduzidas pela reforma do Código Civil, repercutirão em todos os cidadãos, colocando-os diante de uma maior exposição ao risco de imputação de responsabilidade, com destaque nos empresários e nos profissionais autônomos. As apólices de seguros de responsabilidade civil já se apresentam como instrumento financeiro eficaz de proteção, na medida em que resguardam a indenidade dos segurados, em face do patrimônio que deixa de ser afetado, assim como os terceiros prejudicados, diante da garantia de indenização que é conferida a eles, conforme o disposto no art. 98 da lei 15.040/2024. A reforma do Código Civil reforçará ainda mais essa necessidade social, da contratação dos referidos seguros.

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1 ORLANDO, Gomes. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. in: DI FRANCESCO, José Roberto Pacheco. (org.) Estudos em homenagem ao Professor Silvio Rodrigues. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 289-302.

2 POLIDO, Walter A. Horizontalização na contratação dos seguros de responsabilidade civil. in: PRADO, Camila Affonso. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. SOARES, Flaviana Rampazzo. ROSENVALD, Nelson. (coords.) Seguros e Responsabilidade Civil. São Paulo: Foco, 2024, p. 147-169.

3 POLIDO, Walter A. O estágio atual da cobertura para danos pessoais (corporais) nos contratos de seguros de responsabilidade civil no Brasil. Novos danos e/ou Novos direitos. São Paulo: Roncarati, 2020 [e-book gratuito, Último acesso em 31/5/2025].

Publicado em Migalhas

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