O Código do Cantão de Zurique e o Direito dos Seguros brasileiro (parte 2)

18/11/2021

Continuação da Parte 1

A influência do Projeto Coêlho Rodrigues (conforme destacado na primeira parte deste estudo) e do Direito suíço que incorpora, sobre a disciplina do contrato de seguro no Código Civil de 1916, diz respeito mais às definições essenciais — ou ao conteúdo das normas — do que a aspectos de sua estrutura. O código de 1916 tratava do seguro em capítulo específico, dentre as várias espécies de contratos típicos (capítulo 14, do título 5, livro 3, artigos 1432 e ss). O capítulo era dividido em cinco seções. A primeira, com disposições gerais sobre o contrato. A segunda, com as obrigações do segurado. A terceira, com as obrigações do segurador. A quarta, dispondo sobre o seguro mútuo. E a quinta, sobre o seguro de vida. Nesse contexto, observa-se que o Código de 1916, à semelhança do Projeto Coêlho Rodrigues e do Código de Zurique, disciplinava o seguro com a previsão de disposições gerais, as quais eram seguidas das obrigações do segurado e do segurador, e de disposições especiais, relativas às várias espécies. Diferentemente, contudo, o capítulo não estava dividido em três partes, como nos anteriores. E, nas disposições especiais, tratava apenas dos seguros mútuo e de vida.

Nesse particular, a mais notável contribuição do Código de Zurique, por intermédio do Projeto Coêlho Rodrigues, refere-se à sistematização e ao tratamento unitário do seguro terrestre. O código de 1916, ao prever um capítulo específico ao contrato de seguro, estabelece, pela primeira vez na legislação brasileira, uma disciplina geral e abrangente, até então contemplada apenas pelas disposições do Código Comercial sobre os seguros marítimos. Isso levou a que, em relação aos demais seguros, a ausência de normas legais, o exercício da liberdade contratual pelos seguradores revelasse simples tradução das apólices de seguradores estrangeiros com atuação no Brasil, dando causa a imprecisões e contradições com elementos característicos do sistema jurídico brasileiro [1]. O código de 1916, aproveitando-se da influência do Direito estrangeiro, cumpre o propósito de promover a sistematização até então inexistente, a partir de uma disciplina razoavelmente abrangente dos principais aspectos do contrato de seguro.

Essa disciplina sistemática e unitária resultou, em grande medida, do transplante de diversas normas e institutos do Direito suíço para o Direito brasileiro. Algumas delas representando verdadeira inovação no sistema jurídico; outras, por outro lado, reforçando o que já era reconhecido na tradição brasileira, ou mesmo, modificando-a quanto a certos aspectos.

Merece destaque, nesse contexto, a positivação do dever de boa-fé no contrato de seguro (artigo 1443: “O segurado e o segurador são obrigados a guardar no contrato a mais estrita boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes”). A norma em questão, que, aliás, será reproduzida, com pequenas modificações, no Código Civil de 2002 (artigo 765) [2], teve inspiração no artigo 508 do Código de Zurique [3], segundo o qual, “na conclusão de um contrato de seguro ambos os contratantes são obrigados à veracidade e lealdade” (Bei Schliessung des Versicherungsvertrages sind beide Parteien zur Wahrhaftigkeit und Treue verpflichtet”[4]. Sua previsão legal não representou uma completa inovação; antes, reforçou a tradição jurídica brasileira que, em alguma medida, já reconhecia o papel proeminente da boa-fé no seguro.

Da mesma forma, é possível perceber a influência do Código de Zurique na disciplina conferida ao seguro de vida pelo código de 1916 [5]. Nesse aspecto, chamam atenção duas disposições.

O artigo 1400, que se ocupou de reconhecer a legitimidade do seguro de vida e de outras modalidades de seguro de pessoas (“A vida e as faculdades humanas também se podem estimar como objeto segurável, e segurar, no valor ajustado, contra os riscos possíveis, como o de morte involuntária, inabilitação para trabalhar, ou outros semelhantes”[6]; assim, sob inspiração do artigo 505 do Código de Zurique: Pessoas e atributos pessoais também podem, no entanto, ser estimadas em um valor de seguro e este ser segurado contra riscos, como, por exemplo, a morte ou incapacidade para o trabalho” [7].

Do mesmo modo, o artigo 1472 do Código Civil de 1916 declarava a legitimidade do seguro sobre a vida de outrem, para tanto introduzindo o critério do interesse na preservação da vida da pessoa (“Pode uma pessoa fazer o seguro sobre a própria vida, ou sobre a de outrem, justificando, porém, neste último caso, o seu interesse pela preservação daquela que segura, sob pena de não valer o seguro, em se provando ser falso o motivo alegado”[8]. Assim, sob os influxos do artigo 548 do Código de Zurique (O segurado pode fazer o seguro para sua própria vida ou para a vida de outro, mas este último caso somente se o segurado tiver um interesse na continuidade da vida da pessoa para a qual o seguro é feito. Caso contrário, o negócio é tratado como um contrato de jogo”[9]. A regra constará, mais tarde, também do Código Civil brasileiro de 2002, ainda que com algumas modificações (artigo 790) [10].

A contribuição do Código de Zurique pode ser observada, igualmente, a propósito de outros aspectos tradicionais do contrato de seguro. Assim, por exemplo: a) no tocante à vedação da cobertura de ato ilícito do segurado (artigo 1436 do CC/16), sob a influência do artigo 500 do Código de Zurique, e mais tarde será compreendido como vedação à cobertura de ato doloso do segurado (artigo 762 do CC/02); b) a proibição, decorrente do princípio indenitário nos seguros de danos, de contração de seguro por valor que supere o bem ou de mais de um seguro para o mesmo bem (artigo 1437), que guardaria correspondência parcial com o artigo 501 do Código de Zurique, e que, sob nova roupagem, constará da disciplina do CC/02 relativa aos seguros de danos (artigo 778 e ss); c) em sentido inverso, no seguro de vida, a permissão de mais de uma apólice sobre o mesmo interesse e a liberdade dos contratantes de estipulação do seu valor (artigo 1441 do CC/16), regra inspirada no artigo 506 do Código de Zurique e atualmente presente no artigo 789 do CC/02; d) a exigência de comunicação do agravamento do risco (artigo 1455 do CC/16), correspondente ao artigo 520 do Código de Zurique, e que constará, em outros termos, no artigo 769 do CC/02 [11]; e e) a previsão de ausência de cobertura para os danos decorrentes de vício intrínseco da coisa (artigo 1459 do CC/16), conforme artigo 524 do Código de Zurique, ora definida no artigo 784 do CC/02 [12].

Esses exemplos, entre outros tantos que por limites de espaço não são trazidos aqui, revelam o importante papel do Código do Cantão de Zurique para a disciplina do contrato de seguro. Sua influência transcende as contribuições originais para a primeira codificação civil, repercutindo ainda hoje, nos vários estratos do Direito dos Seguros brasileiro.

* Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.

[1] ALVIM, Pedro. Do contrato de seguro. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 53.

[2] Artigo 765 do CC. “O segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes.”

[3] BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Cit. p. 573. Segundo o autor, a norma também teria como inspiração o artigo 9 da Lei Belga (1874), segundo o qual: “Toute réticence, toute fausse déclaration de la part de l’assuré, même sans mauvaise foi, rendent l’assurance nulle lorsqu’elles diminuent l’opinion du risque ou en changent le sujet, de telle sorte que l’assureur, s’il en avait eu connaissance, n’aurait pas contracté aux mêmes conditions”.

[4] SCHNEIDER, Albert. Privatrechtliches Gesetzbuch für den Kanton Zürich. Cit. p. 52. Na primeira versão do Código do de Zurique, a norma correspondia ao § 1716 (BLUNTSCHLI, Johann Caspar. Privatrechtliches Gesetzbuch für den Kanton Zürich. Cit. p. 577). Na tradução para o francês, de Ernest Lehr: “Au moment où elles traitent, les deux parties sont tenues d’être sincères et bonne foi” (Code Civil du Canton de Zurich de 1887, Cit. p. 124). No projeto Coêlho Rodrigues, correspondia ao artigo 933 “o segurado e o segurador são obrigados a guardar no respectivo contrato a mais restricta sinceridade e boa fé, tanto a respeito do objecto, como das circumstancias e das declarações pertinentes” (COÊLHO RODRIGUES, Antônio. Projeto do Código Civil Brazileiro. Cit. p. 114).

[5] BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Cit. p. 596 e ss.

[6] No projeto Coêlho Rodrigues, encontra correspondência no art. 930.

[7] No original. Es können aber auch Personen und persönliche Eigenschaften zu einem Versicherungswerthe angeschlagen und dieser gegen Gefahren, z. B. des Todes oder der Arbeitsunfähigkeit, versichert warden” (SCHNEIDER, Albert. Privatrechtliches Gesetzbuch für den Kanton Zürich. Cit. p. 51). No francês: Des personnes et des facultés personnelles peuvent être estimées à une valeur d’assurance et cette valeur assurée contre certais risques, par exemple, de décès ou d’incapacité de travail”. (LEHR, Ernest. Code Civil du Canton de Zurich de 1887. Cit. p. 124).

[8] No projeto Coêlho Rodrigues, encontra correspondência no artigo 976.

[9] No original. “Der Versicherte kann die Versicherung auf sein eigenes oder auf ein fremdes Leben abschliessen, letzteres aber nur, wenn der Versicherte ein Interesse an dem Fortleben der Person hat, auf welche die Versicherung abgestellt wird. Im entgegengesetzten Falle wird das Geschäft als ein Spielvertrag behandelt” (SCHNEIDER, Albert. Privatrechtliches Gesetzbuch für den Kanton Zürich. Cit. p. 66). Na tradução para o francês: “Celui qui traite avec la compagnie peut faire l’assurance sur as propre vie ou sur celle d’um tiers; mais, dans ce dernier cas, il faut qu’il ait um intérêt à la continuation de l avie de ce tiers. Sinon, l’operation est considérée comme un jeu” (LEHR, Ernest. Code Civil du Canton de Zurich de 1887. Cit. p. 132).

[10] Artigo 790 do CC. “No seguro sobre a vida de outros, o proponente é obrigado a declarar, sob pena de falsidade, o seu interesse pela preservação da vida do segurado.”

[11] Sobre a disciplina do risco no contrato de seguro no CC-02 e sua comparação em relação ao CC-16: PETERSEN, Luiza. O risco no contrato de seguro. Roncarati: São Paulo, 2018.

[12] BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Cit. p. 560 e ss.

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