RETROSPECTIVA 2023: O DIREITO DOS SEGUROS EM UMA ENCRUZILHADA

21/12/2023

O ano de 2023 se revela como um marco na trajetória do Direito dos Seguros no Brasil, um período repleto de transformações e desafios. Esta retrospectiva tem como intuito apresentar um panorama desses desenvolvimentos, organizando-se em torno de três eixos: regulatório e legislativo; judicial; e acadêmico.

Mais do que documentar os acontecimentos marcantes de 2023, busca-se, por meio desta coluna, fornecer insights e perspectivas que poderão orientar futuras decisões nesse importante setor da economia.

Cenário regulatório e legislativo

Ao longo do ano corrente, a Superintendência de Seguros Privados (Susep) exibiu uma atuação tímida. Diferentemente do que se observou nos últimos anos, a atual gestão teve pouca atuação regulatória, e pareceu dedicar-se ao âmbito legislativo, primordialmente à aprovação do Projeto de Lei n° 29/2017, resultando, até o presente momento, na expedição de dez Circulares – a maioria alterando Circulares anteriores e nenhuma merecedora de destaque. Paralelamente, o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) contribuiu com uma única Resolução (n° 459, datada de 31 de julho de 2023), que alterou os prazos para a implementação do Open Insurance.

Um aspecto positivo da gestão atual da Susep foi justamente a continuidade dada ao Open Insurance e à criação do Sistema de Consulta de Seguros. Além disso, a instituição de grupos de pesquisa representa uma medida promissora da autarquia, com o potencial de fornecer insumos para a tomada de decisões regulatórias em 2024.

Nesse pano de fundo, afigura-se criticável a ausência de análises de impacto regulatório prévias à criação de normas e de avaliações de resultados regulatórios após sua implementação. Essa tradicional lacuna na metodologia de elaboração e revisão de normativos é um aspecto que necessita de atenção e melhoria imediata no Brasil — seguindo o disposto, especialmente, no Decreto n° 10.411/2020. As decisões regulatórias devem ser embasadas em dados e pesquisas robustas, sendo insuficientes alusões retóricas, ainda que bem-intencionadas, à concretização de preceitos constitucionais.

Se tal prática é essencial no âmbito regulatório, onde as normas podem ser ajustadas com maior facilidade, no contexto legislativo, a necessidade de uma abordagem baseada em evidências e análises aprofundadas se torna indispensável.

Não tem sido esse, porém, o caminho trilhado em relação ao já mencionado Projeto de Lei n° 29/2017, que pretende instituir uma Lei Geral dos Seguros no Brasil, revogando, em especial, a parte do Código Civil que trata dessa modalidade contratual [1]. Sem qualquer tipo de análise prévia de impacto legislativo ou debate público ocorrido no decorrer dos últimos seis anos no Congresso Nacional, o PL vem avançando por motivos pouco compreensíveis para os não iniciados no setor de seguros. Já aos iniciados, a perplexidade é ainda maior.

As polêmicas envolvidas só não são superiores aos impactos que, se sancionada, a nova lei gerará. Enquanto, para alguns, o PL afigura-se um “excelente diploma legal”, para muitos, ele necessita de profundas reformas antes de qualquer avanço [2]. Há mesmo quem diga, em conversas reservadas, que a sua aprovação representaria uma “captura regulatória às avessas”, exercida mediante pressão implacável da “máquina pública”. Observa-se também expressivo receio no sentido de que os progressos regulatórios ocorridos nos últimos anos sejam revertidos sob a justificativa de adaptar Circulares e Resoluções ao possível novo marco legislativo [3]. Os autores desta coluna querem crer que não; e esperam que a atual encruzilhada normativa seja enfrentada com sabedoria e decoro por aqueles que participarão diretamente em sua definição.

Navegando em outras águas, em termos legislativos, merecem destaque: a Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023 (que, entre outras inovações, tornou o contrato de contragarantia um título executivo extrajudicial); a Lei nº 14.689, de 20 de outubro de 2023 (que, após a derrubada do veto presidencial pelo Congresso, passou a proibir a designada “liquidação antecipada” do seguro garantia nas execuções fiscais); e a Lei nº 14.599, de 19 de junho de 2023 (que, grosso modo, tornou obrigatórios alguns seguros relacionados ao transporte de cargas).

Cenário judicial

Como era de se esperar, em 2023 o Poder Judiciário continuou a apreciar ações judiciais cuidando de contratos de seguro. Sem a pretensão de ser exaustivo, seguem algumas decisões relevantes:

  1. “A substituição de carta de fiança bancária por seguro garantia em execução fiscal não necessita de acréscimo de 30% sobre o valor do débito” [4].

  2. “O depósito da indenização (seguro garantia judicial), pela seguradora, no curso de execução trabalhista, somente pode ser exigido na hipótese de o sinistro ter ocorrido em momento anterior ao pedido de recuperação judicial da empresa executada” [5].

  3. “A ciência prévia da seguradora a respeito de cláusula arbitral pactuada no contrato objeto de seguro garantia resulta na sua submissão à jurisdição arbitral, por integrar a unidade do risco objeto da própria apólice securitária, dado que elemento objetivo a ser considerado na avaliação de risco pela seguradora, nos termos do artigo 757 do Código Civil” [6].

  4. Os valores dos prêmios securitários não repassados pela representante da seguradora à empresa seguradora não estão abrangidos nos efeitos da recuperação judicial da representante [7].

  5. “Na modalidade de contrato de seguro de vida coletivo, cabe exclusivamente ao estipulante, mandatário legal e único sujeito que tem vínculo anterior com os membros do grupo segurável (estipulação própria), a obrigação de prestar informações prévias aos potenciais segurados acerca das condições contratuais quando da formalização da adesão, incluídas as cláusulas limitativas e restritivas de direito previstas na apólice mestre” [8].

  6. “(i) é de cobertura obrigatória pelos planos de saúde a cirurgia plástica de caráter reparador ou funcional indicada pelo médico assistente, em paciente pós-cirurgia bariátrica, visto ser parte decorrente do tratamento da obesidade mórbida” [9].

  7. “No caso das seguradoras, as receitas de prêmios por elas auferidas em razão dos contratos de seguro estão abrangidas pelo conceito de faturamento, ficando tais receitas sujeitas ao PIS/COFINS, ante a Lei nº 9.718/98, mesmo em sua redação original, ressalvando-se as exclusões e as deduções legalmente prescritas” [10].

De forma prospectiva, cabe referir que a 2ª Seção acolheu a proposta de afetação dos REsps 1.887.666/SC e 1.926.108/SC ao rito dos recursos repetitivos (Tema 1.211), com o intuito de uniformizar o entendimento sobre a “legalidade de cláusula contratual que estabeleça reajuste do prêmio de seguro de vida em grupo de acordo com a faixa etária” [11]. Indo além, outro tema que provavelmente será julgado sob o rito dos recursos repetitivos é o da “possibilidade de liquidação antecipada do seguro garantia antes do trânsito em julgado dos embargos à execução fiscal” [12], embora essa controvérsia tenha sido consideravelmente reduzida mediante a alteração legislativa descrita anteriormente, por meio da Lei nº 14.689/2023, que modificou o artigo 9º da Lei nº 6.830/1980 (Lei de Execução Fiscal).

Cenário acadêmico

Em 2023, o cenário acadêmico do Direito dos Seguros foi marcado por significativas contribuições. A obra coletiva Direito dos Seguros: Comentários ao Código Civil, coordenada pelos autores desta coluna, foi publicada pela editora Forense e teve lançamentos no STJ, TJ-RS, AASP e no Salão Histórico do I Tribunal de Júri no Rio de Janeiro. Além disso, a editora Quartier Latin publicou Arbitragem e Seguro e Processo Civil e Segur”, vol. II, ampliando a literatura especializada nas respectivas áreas de interseção entre os direitos material e processual dos seguros.

No que se refere a obras individuais ou escritas por dois autores, destacaram-se: Contratos de resseguro na arbitragem: teoria e prática, de Walter Polido, publicada pela Juruá;“Curso de Direito do Seguro e Resseguro, de Vinícius Mendonça, pela Foco; O seguro de Transporte: temas atuais, de Paulo Henrique Cremoneze, pela Roncarati; e o ebook O Mercado de Seguros e Resseguros Brasileiro diante dos fatores ASG, de Gustavo León e Luiz Otávio Mascolo, também pela Roncarati. Notável também foi a segunda edição, pela Forense, de Direito dos Seguros, revista, atualizada e ampliada pelos professores Bruno Miragem e Luiza Petersen.

Entre os eventos nos últimos doze meses, diversos tiveram sucesso de público e crítica. Podem ser citados, à guisa de ilustração: a 38ª Conferência Hemisférica de Seguros (Fides Rio); o 6° Seminário Jurídico de Seguros, sediado no CJF; o seminário Aspectos controvertidos dos seguros agrícolas, ocorrido no STJ; o webinar Atualização do tratamento legal dos seguros no Brasil, na FGV SP; o 15º Seminário de Gestão de Riscos e Seguros, da ABGR; o seminário PLC de Seguro n° 29/2017 em debate, na AASP; e o congresso anual da AIDA (XV Congresso Brasileiro de Direito de Seguro e Previdência). Houve, ainda, o 3º Congresso Internacional de Direito do Seguro, no STJ.

Além disso, a coluna “Seguros Contemporâneos”, da revista eletrônica Consultor Jurídico, continuou a ser publicada quinzenalmente às quintas-feiras. No campo dos podcasts, destacaram-se o InsurCast, o ENSCast, o SeguroCast e o Direito Empresarial Café com Leite.

Todas essas iniciativas contribuíram para o enriquecimento da teoria e da prática do Direito dos Seguros nacional.

Considerações finais

Em síntese conclusiva, pode-se afirmar que, no cenário regulatório e legislativo, o Direito dos Seguros termina o ano de 2023 em uma encruzilhada. As decisões futuras relacionadas ao PL n° 29/2017 terão um impacto substancial tanto na área jurídica, quanto na economia nacional.

É crucial, portanto, que a direção escolhida esteja em harmonia com os preceitos constitucionais, incluindo os princípios que orientam a administração pública em geral (artigo 37 da CF), bem como que leve em consideração noções estruturantes do Direito dos Seguros, tais como a boa-fé, o equilíbrio contratual, o mutualismo, a predeterminação do risco, a garantia de interesses legítimos, e os fenômenos associados à assimetria informativa, incluindo o risco moral e a seleção adversa do risco. Adicionalmente, é imprescindível adotar uma abordagem baseada em dados e evidências, contemplando as experiências internacionais e as particularidades do contexto brasileiro, sem descuidar da unidade do ordenamento jurídico.

Para garantir um equilíbrio adequado entre os três cenários mencionados, deve-se evitar um diálogo fragmentado (ou inexistente) que possa resultar na repetição de desafios já enfrentados neste ano. Assim, olhando para 2024, torna-se essencial que as lições extraídas da doutrina e as decisões do Poder Judiciário exerçam uma influência mais significativa no cenário regulatório e legislativo.

Dito de outra forma: convém não reinventar a roda, especialmente desconsiderando os manuais.

 


[1] Registre-se, por oportuno, que não se deve eliminar a possibilidade de alteração do tratamento legal dos seguros por meio da atualização do próprio Código Civil.

[2] Quando se argumenta que o PL nº 29/2017 seria protetivo aos consumidores, o que corresponderia à tutela de preceito constitucional, é preciso não confundir a adequada proteção com o seu excesso. A reflexão subjacente sempre desaguará nas respectivas fontes de custeio e que, consequentemente, certamente impactarão nos preços dos contratos. O excesso de proteção, como sabido, acaba por gerar verdadeiros gaps de cobertura, seja em razão de sua descontinuação pelo mercado, seja do aumento importante dos prêmios praticados. Também é importante observar que a alegação de que a comunidade internacional de especialistas em direito securitário oferece amplo apoio ao Projeto de Lei 29/2017 é incorreta. Sobre o tema, consulte-se, por exemplo, as críticas do professor Pedro Romano Martinez, presidente da comissão de juristas que criou a Lei de Seguros de Portugal (Decreto-Lei n.º 72/2008), disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-jan-01/entrevista-pedro-romano-martinez-diretor-universidade-lisboa/. Acesso em: 18/12/2023.

[3] Na advertência de Walter Polido: “Quando o próprio Governo declara que a Lei de Seguros promoverá o incremento da produção de seguros no país, todos os envolvidos no setor sabem que não é real essa manifestação. (…) Não existe o cenário de insegurança jurídica que é alardeado de maneira parcial. (…) A proposta legislativa, como ela está indicada atualmente, apresenta pontos conflitantes e equívocos que podem conduzir o Brasil a um isolamento prejudicial. A possível revogação de regulamentações recentes, como a Resolução CNSP 407/21 e as Circulares Susep 620/20, 621, 637, 639, 640, 644, 642/21, 662, 667/22, que visaram a modernização do mercado de seguros, seria uma reversão preocupante”. POLIDO, Walter. PLC 29/17: desafios para o Mercado de Seguros Brasileiro. Disponível em: https://jns.com.br/reflexoes-criticas-sobre-o-plc-29-17-desafios-para-o-mercado-de-seguros-brasileiro/. Acesso em: 17/12/2023.

[4] STJ, REsp 1.887.012-RJ, Rel. Ministro Francisco Falcão, 2ª Turma, j. 15/08/2023.

[5] STJ, AgInt no CC 193.218-DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 2ª Seção, j. 30/05/2023.

[6] STJ, REsp 1.988.894-SP, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, j. 09/05/2023.

[7] STJ, REsp 2.029.240-SP, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, j. 16/05/2023.

[8] STJ, REsp 1.874.788-SC, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 2ª Seção, j. 02/03/2023. (Tema 1112).

[9] STJ, REsp 1.870.834-SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 2ª Seção, j. 13/09/2023. (Tema 1069).

[10] STF, RE 400479 AgR-ED / RJ, Redator Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. 13/06/2023. Conforme lição precisa da doutrina sobre o que foi definido no referido julgado: “a incidência das contribuições federais recai apenas sobre a arrecadação de prêmios das seguradoras, mas não vale para demais receitas que não decorram de suas atividades operacionais típicas, como os ganhos gerados pelas aplicações das reservas técnicas”. CARVALHAL, Glauce; OLIVEIRA, Heitor. As decisões judiciais relevantes para o setor segurador no ano de 2023 e as perspectivas de continuidade para 2024. Revista Jurídica de seguros, nº. 18. Rio de Janeiro: CNseg, novembro de 2023. p. 139.

[11] STJ, ProAfR no REsp 1.887.666-SC, Rel. Ministro Raul Araújo, 2ª Seção, j. 15/08/2023.

[12] Permanecem como representativos de controvérsia os REsps 2.093.033/SP e 2.093.036/SP. A propósito deste tema, seja consentido remeter a: JUNQUEIRA, Thiago. Críticas à liquidação antecipada do seguro garantia judicial antes do trânsito em julgado dos embargos à execução fiscal. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 93, 2023. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire93>. Acesso em: 18/12/2023.

Publicado em Conjur

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