Seguros Contemporâneos | Seguros ou planos de saúde? Uma confusão (in)evitável?

10/04/2025

A coluna Seguros Contemporâneos traz a público artigo do professor Francisco Rodrigues Rocha, da Universidade de Lisboa, sobre o problema ligado à confusão terminológica e técnica entre seguros e planos de saúde no sistema português.

Os seguros, é sabido, são, na feliz expressão de Dreher, um “produto jurídico”, um tipo contratual dotado de especial elasticidade, a ponto de, sem exagero, podermos chamá-los de “camaleônicos”. A sobreposição do seguro com outros tipos contratuais de direito privado tem uma boa explicação, segundo cremos, “genealógica” e é, de resto, bem conhecida (assim, e. o., Pedro Romano Martinez): pode ser concebida uma aposta de modo similar a um seguro; um mútuo aleatório, como o do tipo de câmbio marítimo mas não só, pode desempenhar também função idêntica a um seguro; uma venda suspensiva ou de «esperanças» igualmente; o seguro pode ainda sobrepor-se às rendas vitalícias, elas mesmas consubstanciando um tipo contratual civil autônomo; os seguros ditos de capitalização são também eles facilmente confundíveis com depósitos a prazo; um seguro-caução pode assumir o figurino de uma fiança ou garantia autônoma; um swap de crédito pode desempenhar a função de um seguro de crédito; um p.i.b.s. contém no seu núcleo um mandato para gerir e investir e está a paredes-meias com a gestão de carteiras, também este um tipo contratual do mercado de capitais e intermediação financeira; um seguro pode também desempenhar função de garantia no âmbito de um contrato de alienação.

Isto já para não falar doutras figuras semelhantes a seguros, mas que, segundo determinados critérios, materiais ou não, mas sempre debatíveis, soem ser deles discernidos: pensamos nas modalidades ditas de concessão de benefícios mutualistas, mas também nos planos-poupança, sejam de reforma, educação ou mistos, ou nos planos e fundos de pensões. E, ainda, para não falar de certas prestações que os seguradores assumem, como sejam a própria assistência jurídica ou assistência em viagem (por ex., reboque).

Tudo isto não obstante a constatação de Clarke, retomada por Ferreira de Almeida ou Margarida Lima Rego, de que, assim como reconhecem um elefante quando o veem, os tribunais conseguem identificar um contrato de seguro, sempre que um se lhes apresenta. A doutrina, talvez mais a um plano teórico, mas sempre necessário, afadiga-se em circunscrever umas e outras figuras, com critérios umas vezes demasiado estritos, outras excessivamente amplos, mas em termos que soam não raro artificiais e com relativo, para não escrever reduzido, sucesso, quando confrontados com a nua realidade.

É, de fato, com os casus perplexi (Leibniz, Backhaus), com, recordando Dworkin, os hard cases, que melhor testa o jurista as suas teorias: mas os hard cases, sobretudo quando empreender tarefa hercúlea se apresente — aliás, apresenta — impossível, são, por isso mesmo, difíceis de resolver.

À lista, já de si extensa, juntam-se os planos de saúde, considerados amiúde (meros) “cartões de descontos” (entendimento ASF 2012; mas também “cartões de saúde“: relatório ERS 2014), nos quais, “sem a componente de risco que é típica e exclusiva dos seguradores”, o “cliente paga um determinado valor, por regra mensal, para ser detentor de um cartão que lhe permite aceder aos prestadores de saúde privados da rede pagando um valor bem mais reduzido do que se não tivesse o cartão” (assim, Francisco Luís Alves); os valores a pagar pelo cliente podem ser “confundíve[is] com o valor de pagamento ou franquia que fica a cargo da pessoa segura num seguro”, mas, no caso dos planos, a respectiva entidade comercializadora “não é suposto que (…) suporte parte dos custos[,] como ocorre tipicamente com os seguradores” (id.).

Em Portugal, são tais produtos já de há algum tempo comercializados, por vezes até com técnicas de marketing e venda agressivas, cruzadas, algumas delas persuasivas, a públicos-alvo propensos, com terminologia amiúde próxima da seguradora. Tais planos são comercializados por entidades várias, nomeadamente por entidades prestadoras de cuidados de saúde (vg. hospitais), e até distribuídos por bancos, que são invariavelmente também mediadores na categoria de agentes de seguros. Na percepção do público, do destinatário médio, são tais produtos quase sempre vistos como seguros, para logro, que não dura muito, até à ocorrência do “sinistro”, dos “tomadores” de tais planos. Muitos destes enganos redundam em reclamações, recebidas entre nós, em Portugal, pela Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF), que decidiu agir contra este estado de coisas (as decisões dos tribunais, de que tenhamos conhecimento, não são ainda expressivas: vd., todavia, ainda que a latere, RGm 31-Out.-2012, proc. nº 295/10.1TBFLG.G1, RLx 10-out-2021, proc. nº 11689/17.1T8LSB.L1-2, RLx 13-Jul.-2022, proc. nº 291/21.3YUSTR.L1-PICRS, e sentenças JP Trofa 26-Fev.-2018, proc. nº 9/2018-JPTRF, JP Funchal 10-Dez.-2010, proc. nº 149/2010-JP, ou JP Lx 5-Mar.-2009, proc. nº 1051/2008-JP). Por isso, decidiu lançar a Consulta Pública nº 1/2025, de 2 de Janeiro, sobre o Projecto de Recomendações relativas à diferenciação entre seguros de saúde e planos de saúde.

O projeto pode ser, à primeira vista, decepcionante: abrange somente seguradores, não todavia os principais promotores de tal confusão e os produtos por estes comercializados. Não podia, todavia, ser doutro modo, dadas as competências de que por lei dispõe a ASF, circunscritas por princípio ao mercado segurador. As principais «recomendações» (não nos deteremos, por ora, sobre a natureza jurídica ou força normativa de um tal instrumento) que a ASF projecta são, em síntese, as seguintes: (1) os seguradores não usem o termo “plano” para distinguir tipos de cobertura no contrato de seguro e revejam as apólices e respectivos sítios da internet conformemente; e (2) os seguradores se abstenham de comercializar meros “planos de saúde”.

A iniciativa, que se insere num quadro de atuação programada da ASF, que, nos últimos anos, tem consagrado especial atenção aos seguros de saúde (recordem-se, eg., os recentes “portal” e “observatório” de seguros de saúde, ou intervenção na conferência anual da ASF 2023, mas já também entendimento do ISP na Revista Fórum 31 (2012) e vídeo de novembro de 2023), concertada com a ERS (vd. o relatório Os cartões de saúde em Portugal, Mai. 2014, incl. análise de direito estrangeiro a pp. 22 ss.), secundada pelo sector (por ex. a Aprose ou a APS) e com respaldo na investigação académica (cátedra Jean Monnet com Margarida Lima Rego), é de aplaudir.

De fato, a percepção de engano é grande e as reclamações sucedem-se. Algumas das práticas poderiam até ser consideradas desleais, e, dentre estas, enganosas, para efeito do Decreto-Lei nº 57/2008, de 26 de Março, que transpôs a Directiva nº 2005/29/CE, e do Código da Publicidade (assim, Francisco Luís Alves), podendo ainda trazer-se a terreiro a Norma Regulamentar do ISP nº 3/2010-R, de 18 de Março, em matéria de publicidade de seguros. Isto não significa, porém, que não tenhamos dúvidas sobre o modo como a ASF fundamentou a sua intervenção.

Uma primeira respeita a um problema de fundo, a que aludimos no início deste texto: nem sempre é um seguro inteiramente discernível doutras figuras contratuais, aspecto que não pode, hoje como de há muito, ser novidade na «indústria». Há, aliás, produtos que podem perfeitamente sobrepor-se a seguros de saúde, como é o caso das modalidades mutualistas chamadas de benefícios de saúdeut artigo 4º do Código das Associações Mutualistas (a que ASF não alude, não obstante ter a supervisão destes produtos e respectivas associações, em função de determinados índices legais, passado, ainda que gradualmente é certo, para a esfera da ASF), ou os planos poupança-educação (p.p.e.) ou reforma-educação (p.p.r./e.), de harmonia com o Decreto-Lei nº 158/2002, e que, correspondendo muitas vezes a um seguro do ramo vida, não têm forçosamente de assumir uma tal veste jurídica (artigo 1º/3 ibid.).

Por aqui entra-se noutro ponto: a ideia de que a indústria seguradora não usa, não deva usar a palavra “plano”, como referido nos pontos 12.1 ou 12.2 do Projeto, não é exata; os seguradores que comercializem p.p.e. ou p.p.r./e. devem até fazê-lo. Aliás, a própria Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei nº 95/2019, de 4 de Setembro (posteriormente ao Regime Jurídico da Actividade Seguradora de 2015), alude, na base 27/1, sob a epígrafe «Seguros de saúde», à «subscrição de um seguro ou plano de saúde (acrescentando “pelo segurador” quanto à informação a prestar; e no seu nº 2 faz recair sobre os “estabelecimentos de saúde” também a prestação de informação).

Note-se, ainda, que existem exemplos doutros produtos, que as empresas de seguros do ramo vida podem gerir e comercializar, como é o caso dos fundos de pensões, que têm justamente na sua base planos, terminologia que abunda no Regime Jurídico dos Fundos de Pensões, aprovado pela Lei nº 27/2020, de 23 de Julho: sejam planos de pensões, sejam também, o que nem sempre é devidamente realçado, planos de benefícios de saúde (artigo 4º bibid.), que podem inclusivamente ser financiados através de fundos de pensões (artigo 14º ibid.).

Já para não falar da alusão a plano (de reforma), que se encontra no artigo 60º do Regulamento (UE) nº 2019/1238, de 20 de Junho, relativo ao produto individual de reforma pan-europeu (p.e.p.p.). Não pretendendo, nesta ocasião, entrar no problema da natureza jurídica de tais «planos», parece claro que a confusão começa, logo, na legislação vigente. Talvez não seja, por isso, inteiramente correcto reputar um problema de literacia financeira (assim, no Projecto, a pág. 3) o não discernimento entre seguros e planos; o problema é mais complexo do que a forma como a ASF o coloca.

Também por isso a interpretação que a ASF faz do nº 1 do artigo 47º do Regime Jurídico da Actividade Seguradora, aprovado pela Lei nº 147/2015, de 9 de Setembro, talvez seja demasiado rígida: por um lado, porque apelidar-se um seguro de plano de saúde não significa que deixe de ser um seguro (é um problema de qualificação ou de “natureza” jurídica); por outro, porque planos com benefícios de saúde podem também os seguradores comercializar ou integrar em fundos que giram (vimos já: p.p.e. ou planos de benefícios de saúde); depois, porque “o exercício da atividade seguradora”, que é “objecto exclusivo” dos seguradores (artigo 47º/1 ibid., que a ASF invoca), também abrange outros produtos que não são, segundo opinião corrente, tout court seguros, como é o caso das operações de capitalização (cf. artigo 9º dibid); e, ainda, porque a interpretação do artigo 47º/1 ibid (norma legal que contém uma gralha, que a ASF curiosamente corrige no ponto 12.2 do Projecto), na parte em que alude a “operações dela [i.e. da atividade seguradora] diretamente decorrente[s]”, deve considerar todo este leque de produtos que não são em rigor seguros mas que os seguradores podem comercializar.

Um outro aspecto diz respeito ao recurso, nos planos de saúde, a “terminologia típica do contrato de seguros e que a este deve estar circunscrita”, exemplificando-se com as expressões “franquia”, “carência” ou “cobertura” (ponto 5 do projeto). Não nos parece, antes de mais, que o universo dos seguros tenha o exclusivo de certa terminologia (ainda) que lhe seja própria. Aliás, basta olharmos para o articulado do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, para constatarmos, com relativa facilidade, que, mesmo em terminologia muito característica deste produto, como é o caso da palavra sinistro, existem importações claras da terminologia de direito civil para as condições (cf., por ex., o artigo 275º do Código Civil sobre “verificação da condição”, em comparação e. o. com o 99º do RJCS: “verificação (…) do evento”); ou mesmo a palavra usada para caracterizar a prestação do segurador, recorrentemente dita indemnização, importada do direito da responsabilidade civil (artigos 483º ss. ou 562º ss. do Código Civil); já para não falar das exclusões limitações de cobertura, com paralelos claros com as exclusões e limitações de responsabilidade; et sic deinceps.

É verdade que há termos mais frequentemente usados no domínio dos seguros, de que franquia, carência ou cobertura são bons exemplos. Mas mesmo estes não são totalmente exclusivos dos seguros (um artigo tão importante quanto o 437º do Código Civil, em matéria de alteração das circunstâncias, alude nada mais nada menos a que a “exigência das obrigações (…) não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato”; para não falar doutro tipo de “cobertura”: artigo 1363º/1 ou 1421º/1 bibid.; também em matéria de segurança ou previdência social se fala de cobertura: cf., ex multis, artigo 478º/2 do Código do Trabalho ou 15º, 19º/2 ou 184º/1, 3 e 4 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social; além de variadíssimos outros significados que possa assumir, de carência também se fala por referência a capital no contexto de operações de crédito: cf., por ex., o Decreto-Lei nº 22-C/2021, de 22 de Março; de franquia também se fala por referência a direitos tributários ou aduaneiros: por ex., franquia de direitos de importação, no Decreto-Lei nº 383/84, ou selos de franquia e franquia postal, etc.).

Outro aspecto respeita também à ideia de, nos planos de saúde, inexistir “qualquer risco enquadrável na atividade seguradora” (ponto 1 da secção I “Introdução” do Projeto; no entendimento do ISP de 2012 era-se mais peremptório: “encontram[-se] disponíveis no mercado diversos cartões de descontos relativos a cuidados de saúde que não têm a natureza de seguros de saúde, por não garantirem qualquer risco”). Entra-se aqui num ponto delicado, que envolve problemas vários, muito controversos: o conceito de risco nos seguros e a sua concretização nos seguros de saúde.

Um plano de saúde envolve também, seguramente, a cobertura de riscos. Sucede, porém — no que a afirmação da ASF de 2025 é em parte mais correta do que a do ISP (ASF) de 2012 — que os riscos tipicamente assumidos por tais planos não têm sido, em toda a sua extensão, os tipicamente cobertos por contratos de seguro de saúde (por isso, verificam-se diferenças, por exemplo, ao nível das limitações de idade, cobertura de doenças pré-existentes, períodos de carência, capitais ou limite de despesas — algumas destas diferenças, nem sempre iguais, de produto para produto, são realçadas pelo sector, em abono — como seria de esperar — da cobertura por seguros: Joana Morais Fonseca, Seguros de saúde versus planos de saúde. O que os une o que os separa, notícia ECO, de 4 fev. 2025), nem está atestado que se faça “a cobertura do risco com base na técnica seguradora, ou seja, com base em cálculos estatísticos de frequência de sinistros como condição da determinação do preço do serviço de cobertura do risco” (ponto 2 ibid.).

A verdade, porém, é que o conceito de risco no contrato de seguro, com o notável alargamento que tem conhecido, não permite afastar claramente, em todos os casos, estes planos do universo segurador.

Chegamos, assim, ao fim do presente escrito. O projeto da ASF é, a vários níveis, louvável, ainda que, como não podia deixar de ser, com alcance restrito. De resto, não nos parece pudesse ser proibida a comercialização de planos de saúde, no estado atual da nossa legislação. Mas talvez, com ou sem uma tal legislação, os seguros nem sempre sejam facilmente discerníveis doutros esquemas ou figuras contratuais: não o é assim já noutros casos?

Publicado em Conjur

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